GRANDES E DESORGANIZADOS
Déficit de atenção e hiperatividade são comuns em adultos. Dificuldade em gerenciar o próprio tempo é um dos sintomas.
Estima-se que varie entre 3% e 5% o contingente de pessoas que sofrem do chamado Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) na população de modo geral. Levando-se em conta que o Brasil tem cerca de 200 milhões de habitantes, o número de portadores do transtorno no país seria de pelo menos 4,3 milhões. Trata-se de um problema que costuma se manifestar em crianças, mas que a maioria dos pais, educadores e profissionais de saúde não estão preparados para identificar e dar suporte adequado ao seu tratamento.
“Em alguns locais, como nos grandes centros urbanos, o tema tem recebido uma atenção maior da mídia e tem sido possível fazer um bom diagnóstico e tratamento”, explica o psiquiatra Ênio Roberto de Andrade, diretor técnico do Serviço de Psiquiatria Infantil e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É preciso entender que a doença em si é relativamente estável. O que tende a se agravar com o tempo são os prejuízos que acarreta para a vida de seu portador e também de seus familiares.
SINAIS PRECOCES
Em crianças, as consequências costumam ser a repetência escolar e a perda de amigos gerada por dificuldades de convivência e brigas constantes. Em situações mais críticas, também pode levar ao abuso de drogas e à repetição de comportamentos que coloquem em risco a própria integridade e a vida desses menores. Não há uma idade específica para os sintomas aparecerem. “Eu costumo brincar que o TDAH já nasce pronto. O que ocorre é que, hoje em dia, as etapas do desenvolvimento infantil parecem mais precoces porque os filhos vão para a escola mais cedo. É quando pais e educadores começam a perceber que o comportamento de determinada criança destoa das outras”, afirma Andrade. Se antes ela só adentrava o ambiente escolar por volta dos 7 ou 8 anos, atualmente o faz entre 4 e 6 anos.
Os primeiros sinais de TDAH costumam ser a dificuldade de concentração, principalmente de manter a atenção por um período prolongado, a inquietação e agitação constantes, além de falar em demasia, inclusive sem deixar o interlocutor completar seu discurso, e estar o tempo todo em atividade, correndo, sob intensa impulsividade e causando muitas brigas. A dificuldade para os profissionais de saúde é justamente avaliar quando esse tipo de comportamento é absolutamente normal e quando se trata de uma característica do distúrbio. Ênio de Andrade que, além de trabalhar num sistema de atendimento público também tem clínica particular, e, portanto, possui uma visão abrangente do universo da saúde pediátrica, observa que a maioria dos profissionais de saúde não especializados em TDAH não costuma fazer encaminhamentos e nem mesmo o diagnóstico. Ele conhece casos de pediatras que se opõem ao tratamento medicamentoso.
Por isso muitos pais ainda percorrem aquela famosa via-sacra de ir de médico em médico até finalmente descobrir o profissional mais habilitado para cuidar de seus filhos. O mais provável é que lá na ponta dessa via-crúcis acabem chegando ao consultório do neuropediatra ou do psicólogo. Se estes profissionais tiverem preparo e costume com o quadro podem indicar o tratamento adequado – no caso do neuropediatra – ou fazer o encaminhamento correto – no caso do psicólogo.
Mas dificilmente os pais procuram primeiro aquele que, ao lado do neuropediatra, costuma ser o profissional mais indicado para diagnosticar e tratar o TDAH: o psiquiatra. “Há ainda muita desinformação e preconceito. O psiquiatra assusta e é visto como médico de loucos, alguém que vai dopar a criança com remédios”, conclui Andrade. Por outro lado, como se fosse este o último recurso, muitos pais chegam ao consultório psiquiátrico desesperados, dispostos a acatar qualquer tratamento que seja proposto. “Enquanto isso, quem paga o preço é a criança porque é ela que continua sofrendo as consequências do transtorno”.
TRATAMENTO E ORIGEM
Descoberta a anatomia do problema, é preciso paciência. O tratamento tende a ser longo e exige acompanhamento prolongado mesmo após o controle dos sintomas. “Evidentemente isso varia de caso para caso. Quando os pais insistem em saber quanto tempo durará o tratamento; eu costumo dizer que vai durar no mínimo um ano mais o acompanhamento, que deve se estender por mais ou menos cinco anos”, afirma Ênio de Andrade. O que vai determinar a suspensão do tratamento é a supressão dos sintomas, ou remissão, como é expressa no jargão médico. Os especialistas acreditam ser delicado referir-se a “cura” porque o termo dá a impressão de que há um agente causador que foi eliminado e que nunca mais vai voltar. Na verdade, não existe este agente causador como se nos reportássemos a um vírus ou bactéria.
O TDAH parece se dever a uma conjunção de fatores, mas o principal deles é o genético. O fator ambiental pode piorar a intensidade dos prejuízos. Ou, em certos casos, até amenizá-los. É o que acontece, por exemplo, quando uma pessoa sabe de sua tendência à desatenção, mas compensa isso preparando um local calmo para estudar. Por outro lado, trabalhar em local estressante, barulhento, movimentado, repleto de estímulos, pode agravar ainda mais o TDAH.
A determinância do fator genético fica clara quando há irmãos compartilhando o mesmo problema. Se o pai ou a mãe carregarem o TDAH, a probabilidade dos filhos também desenvolverem o transtorno é quatro a sete vezes maior que numa família em que eles são isentos do problema. Se ambos sofrerem do transtorno, a chance de as crianças reproduzirem o quadro aumenta para 12 vezes. Pela relevância que a carga genética assume, fica difícil falar em prevenção. Mas há sim cuidados que as mulheres podem tomar durante a gestação e que podem diminuir esse risco, como não fumar, não tomar bebidas alcoólicas e não usar drogas, pois se sabe que substâncias como nicotina e álcool podem desencadear a doença.
MAIORIDADE
Até alguns anos atrás, muitos especialistas acreditavam que o TDAH simplesmente desaparecia com o passar do tempo e não acompanhava o indivíduo na idade adulta. Hoje já se sabe que não é exatamente assim. Muitas pessoas que receberam ou não tratamento durante a infância podem chegar à vida adulta com o problema. A possibilidade de o transtorno voltar a se manifestar é de no mínimo 30%, consideram os profissionais ouvidos nesta reportagem.
“De modo geral, não há muita diferença com relação ao que acontecia na infância. O que ocorre é que o contexto da vida adulta é muito mais complexo e sofisticado. Por isso as dificuldades podem aumentar, mas as queixas de desatenção, hiperatividade e comportamento impulsivo se mantêm basicamente as mesmas”, compara o médico psiquiatra Mário Rodrigues Louzá Neto, coordenador do Projeto de Déficit de Atenção e Hiperatividade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP).
O que esses sintomas em geral acarretam é uma grande dificuldade em gerenciar a própria vida. O que costuma imperar é a desorganização, refletida até nas coisas mais prosaicas, como uma mesa de trabalho absolutamente caótica. Há dificuldade em manter a atenção nas atividades do dia-a-dia, especialmente se for por um longo período de tempo. “A pessoa não consegue manter o foco durante o tempo necessário para concluir uma tarefa. Ela até consegue realizar as partes mais interessantes desta atividade, mas no trecho mais sem graça, digamos assim, ela abandona ou posterga a tarefa”, descreve Mário Louzá. Também é bastante provável que se atrapalhem no gerenciamento do tempo e percam com facilidade compromissos e objetos. Esse conjunto de situações costuma ser primeiramente notado pelo cônjuge, que é a pessoa mais próxima. O rendimento profissional também tende a ficar aquém do esperado.
HERANÇA INFANTIL
A maioria dos adultos com TDAH não teve o diagnóstico quando criança. É preciso saber, entre outras coisas, se na infância o indivíduo trocou muitas vezes de escola, se houve várias repetências, se não ia bem nas provas por motivo de distração. Quando o paciente é jovem, é possível remontar o histórico com a ajuda dos pais e dos boletins escolares.
Constatado o transtorno, do ponto de vista medicamentoso, as abordagens são praticamente iguais às da criança. O tratamento pode se iniciar com psicoestimulantes ou antidepressivos. Os menores se beneficiam de recursos psicopedagógicos, exercícios de psicomotricidade e terapia comportamental cognitiva. No adulto, a psicoterapia pode também melhorar as habilidades sociais, facilitando o dia-a-dia.
Outro problema resultante da falta de diagnóstico na infância é que, ao chegar à idade adulta, a pessoa já vem carregando uma série de frustrações que pode ter abalado sua auto estima. Afinal, a criança cresceu ouvindo que era chata, bagunceira, e só estragava a brincadeira dos colegas. É esse o histórico que carrega. Algo com reflexo direto no seu rendimento afetivo. Mas não é só o aspecto psicológico e comportamental que precisa ser cuidado. O tratamento medicamentoso é essencial. No Brasil só há um psicoestimulante disponível para tratar o TDAH. É o metilfenidato, comercializado aqui por dois diferentes laboratórios e conhecido pelos nomes comerciais de Ritalina e Concerta, mesmo tipo de medicamento indicado para crianças. São as drogas mais estudadas e também as mais eficazes para o controle do transtorno.
Principalmente nos adultos, o TDAH pode desencadear simultaneamente quadros de depressão ou ansiedade. Como é preciso abordar as duas doenças juntas, pode ser indicado o uso de antidepressivos, pelo menos inicialmente. Apesar dos estudos já acumulados nesta área, os especialistas são unânimes em apontar a falta de conhecimento da comunidade. No senso comum existe a ideia de que essas pessoas sempre foram assim. Por isso acredita-se que este é “um jeito de ser” e não se reconhece o quadro como uma patologia capaz de atrapalhar o rendimento profissional e o convívio social.
ADESÃO
Por outro lado, pode ser desanimador para muitos pacientes descobrir em si um transtorno que exige cuidados que devem perdurar, teoricamente, a vida toda. Como este tende a ser um quadro estabilizado na fase adulta, muitos acabam rejeitando o tratamento. Louzá aponta, ainda, outra incógnita. Não se sabe se é o tratamento prolongado que faz a pessoa melhorar ou se ela de fato melhoraria com o tempo, mesmo sem o tratamento. “Como precisaríamos deixar um grupo de pacientes para produzir esse escudo, eticamente não há como responder essa pergunta”, ele pondera.
Além disso, há outras implicações. O risco de abuso de álcool e drogas aumenta entre os pacientes de TDAH. As chances de abusar de substâncias químicas neste caso são de três a cinco vezes maior que nos outros indivíduos. Uma das grandes preocupações do tratamento é evitar estragos como esse. A adesão ao tratamento é muito variável, mas rende a ser difícil, pelas próprias características da doença. Interromper os cuidados significa voltar ao estado basal constatado antes de seu início. Muitos se acomodam a esta situação, ou o ganho obtido não é o esperado. Nesses casos o paciente pode optar por simplesmente conviver com os danos do TDAH. Mas não é comum nesses casos o repetido abandono e retomada do tratamento.
ESCLARECIMENTO E APOIO
As dúvidas e desorientações de pacientes portadores de TDAH e seus familiares são tantas que continuam insuficientes os recursos da saúde para abarcá-las. A Associação Paulista de Medicina (APM) há cinco anos procura dar sua contribuição pelo menos para o contingente de pessoas que reside em São Paulo. Promove, por meio de seu Comitê Multidisciplinar de Adolescência, a formação de grupos que recebem o apoio de profissionais de saúde especializados neste tipo de atendimento. O esforço, no entanto, tem resultado insuficiente. Tanto que, a fim de atender à longa lista de espera de interessados pelo serviço, a APM passou dois anos sem divulgar o serviço. Voltou a fazê-lo no início de 2006, informando a abertura de inscrições para o grupo que o receberia atendimento a partir do fim de março.
Cada grupo tem a duração de um semestre. “Os pais, principalmente, chegam desesperados. Eles já buscaram vários tipos de ajuda, mas costumam apresentar-se bastante desinformados”, diz o psiquiatra Wimer Bottura Jr., presidente do Comitê. Um dos grupos inicia suas atividades no fim de março, e outro deve se formar e entrar em atividade a partir de agosto. Mas nem todo mundo que ali busca atendimento sofre de TDAH. Todos chegam com essa suspeita, mas alguns acabam descobrindo não ser este o caso. O diagnóstico é feiro durante o trabalho da APM.
Um dos objetivos principais do grupo de apoio, segundo Bottura Jr., é proporcionar aos portadores do transtorno informação e incentivo suficientes para uma maior adesão ao tratamento – a falta de adesão, por sua vez, decorre principalmente de desconhecimento e preconceito. Situações inversas também se verificam. No limite, existem pessoas que estão em tratamento para o TDAH sem que o diagnóstico exista. “As sequelas do transtorno são bem conhecidas. Estão relacionadas ao comportamento, à propensão ao uso de drogas e às dificuldades na escola. Por isso é muito fácil achar que determinados quadros reportam ao TDAH”, explica o médico.
Há também pacientes e famílias que chegam a alimentar a fantasia de que o TDAH será a solução para os conflitos em casa. Eles buscam uma explicação para tantas brigas e competição na convivência doméstica. O diagnóstico poderia servir, neste caso, como uma justificativa válida. Se o transtorno existe de fato, Wimer Bottura Jr. considera o uso de medicamentos imprescindível, mas ressalta a importância de o tratamento ser complementado com orientação familiar e psicoterapia. Só deixa o alerta: “se o TDAH for genuíno, sem o medicamento nada funciona”.
A certeza só vem com exames clínicos realizados por profissionais muito bem preparados para isso. Outros tipos de exame, mesmo as mais avançadas técnicas de mapeamento cerebral, não servem para o diagnóstico, mas para excluir outras hipóteses. A confirmação do transtorno ocorre segundo orientações do DSM-IV, Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana.
Para os pais de crianças com o transtorno, o esforço do grupo de cinco psiquiatras e uma psicóloga que integram o serviço oferecido pela APM é conscientizar sobre a importância da atuação deles para que o tratamento seja efetivo. Para os pacientes adultos é preciso oferecer uma alternativa de convivência com a doença que permita o resgate da auto -estima.
Treinar a classe médica e educadores para o diagnóstico ou encaminhamento adequados seria uma questão ainda em aberto.
DISTRAÍDOS POR NATUREZA
Não é apenas o TDAH o responsável por nos tirar do foco de uma ação e causar dispersão. Todos têm lá seus momentos de dispersão e uma tendência à distração se acentua com o passar do tempo. Isso ocorre em virtude de mudanças no funcionamento do cérebro, percebidas com o avançar da idade. A descoberta de cientistas da Universidade de Toronto e do Rotman Research lnstitute, registrada recentemente pelo Journal of Cognitive Neuroscience e reproduzida por periódicos brasileiros, foi o primeiro registro do modo como a idade altera a capacidade cerebral de ignorar interrupções irrelevantes no dia-a-dia, o que costumamos chamar de distração.
A coordenadora do estudo, Cheryl L. Grady, de 52 anos, especialista em efeitos cognitivos do envelhecimento, partiu da auto observação para tentar explicar o fenômeno. Ela e sua equipe coletaram imagens do cérebro de pessoas jovens, de meia-idade e idosas e conseguiram constatar que ocorre uma falência gradual nos circuitos cerebrais que mantêm o equilíbrio normal da atenção. As falhas nessas estruturas se intensificam por volta dos 40 anos e os indícios são de alterações em regiões específicas do cérebro, especificamente o córtex pré-frontal e áreas correlatas no lóbulo frontal medial.
A boa notícia do estudo patrocinado pelo Instituto Canadense de Pesquisa Médica é que levanta a possibilidade de que pessoas mais jovens, hoje na faixa dos 20 anos e que cultivam uma rotina de contato constante com mensagens instantâneas enviadas pela internet e com outras tecnologias da atualidade, muitas vezes simultaneamente, talvez adquiram maior capacidade de se manter concentrados quando atingirem a velhice.
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