ATRAVÉS DE UM VIDRO SOMBRIO
Embora estejamos acostumados a olhar para nossa imagem em espelhos todos os dias, a maioria de nós não entende como eles funcionam – o que pode resultar em curiosos enganos reflexivos.
Passamos o dia rodeados por espelhos, seja quando dirigimos, andamos pelos corredores dos shoppings, escovamos os dentes ou ajeitamos os cabelos antes de sair de casa. No entanto, apesar de sua onipresença, esses objetos permanecem misteriosos. Nos contos populares e na ficção, eles podem nos levar para reinos mágicos, espirituais ou sobrenaturais: são capazes também de libertar vampiros sem alma ou invocar o lendário assassino conhecido como Candyman. E o espelho de Ojesed, que alcançou fama com Harry Potter, tem o notável poder de revelar o desejo mais profundo de seu espectador.
Talvez nosso fascínio venha do fato de que esses objetos quebram as expectativas. Não só costumamos achar incômoda a inversão entre direita e esquerda dos espelhos, como muitas das nossas intuições, duramente conquistadas sobre o funcionamento dessas superfícies reflexivas, estão erradas. O psicólogo Marco Bertamini e seus colegas da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, identificaram três falsas crenças que, em geral, temos sobre esses objetos: primeiro, tendemos a acreditar que nos veremos no espelho assim que chegarmos à sua frente. Em outras palavras, superestimamos o que é visível em sua superfície.
Essa falha de cálculo é chamada de “erro inicial”. Segundo, a maioria de nós acredita que nosso reflexo no espelho (o contorno que podemos traçar com uma caneta em sua superfície) tem a mesma dimensão que nosso corpo. De fato, a projeção, como a vemos, é metade do nosso tamanho. Terceiro, é comum que imaginemos que nosso reflexo encolherá com a distância e que, se nos afastarmos o suficiente, poderemos ver nosso corpo inteiro em um espelho pequeno. Mas, na realidade, a distância não afeta a dimensão da projeção. Além disso, algumas pesquisas indicam que, de alguma forma, vemos as coisas nessa superfície menos reais. As ilusões que apresentamos aqui aproveitam o pouco que entendemos desse misterioso objeto.
O MAIS HONESTO DE TODOS?
Bertamini e seus colegas Richard Latto e Alice Spooner, ambos então da Universidade de Liverpool, cunharam o termo “efeito Vênus” para descrever um fenômeno curioso que é exemplificado por representações artísticas da deusa romana do amor, a partir de famosos retratos do Renascimento. Em algumas pinturas, Vênus aparece com um pequeno espelho (que ela mesma, ou alguém próximo, segura) que reflete seu rosto.
Quando uma pessoa nos pede que descrevamos pinturas como Vênus ao espelho (ou Rokeby Venus), de Diego Velázquez, a maioria de nós diz que a deusa está olhando sua imagem refletida. O problema, no entanto, é que o espelho não está na linha de visão de Vênus – e, de acordo com as leis da óptica, se podemos ver seu rosto nessa superfície refletora, então a deusa também nos observa em vez de admirar sua própria imagem. Esse tipo de ilusão não se limita a pinturas: ocorre também nas fotografias e na vida real, fato do qual muitas produções de televisão e filmes se aproveitam.
Um dos motivos do efeito Vênus é que não temos muita habilidade para estimar a visão do ponto de vista dos outros. Os pesquisadores ainda não sabem se os antigos mestres incluíam esse recurso em seus trabalhos sem querer ou se era resultado de escolhas artísticas conscientes. Talvez nunca saibamos, mas parece provável que Velázquez – o criador do intrincado jogo de espelhos da pintura de As meninas – conhecesse bem essas superfícies refletoras e também nossa incapacidade de compreendê-las com clareza.
DOIS PONTOS DE VISTA
O interesse de Kokichi Sugihara em ilusões surgiu do que a princípio parecia um problema num software. O engenheiro matemático da Universidade Meiji, no Japão, desenvolveu um programa de computador para ler planos de construção e outros desenhos de linha de objetos tridimensionais. Para testá-lo, ele alimentou as imagens do software com objetos impossíveis, como A escada de Penrose, de M. C. Escher, que parece subir e descer ao mesmo tempo. Para sua surpresa, o programa nem sempre enviava mensagem de erro, mas interpretava muitas dessas figuras como 3D sólidos que só pareciam irreais se visualizados de um ponto de vista específico. De- pois de ficar convencido de que a leitura do software estava correta, ele começou a construir “sólidos impossíveis”, inicialmente com papelão e, mais recentemente, com uma impressora 3D. No processo, Sugihara também produziu outras coisas improváveis. Suas ilusões mais recentes dependem de espelhos e simbolizam o axioma de que nem tudo é o que parece. (Para mais detalhes e modelos para fazer alguns desses objetos, visite o site de Sugihara em http://home.mims.meiji.ac. jp/~sugihara/Welcomee.html).
Na ilusão abaixo, um carro de brinquedo amarelo dentro de uma pequena garagem fica na frente de um espelho vertical, mas, no reflexo, a forma do telhado parece estar errada. O truque de Sugihara requer dois pontos de vista específicos e simultâneos – ver o automóvel diretamente e através do espelho. No entanto, a forma real do telhado não combina com a aparência de qualquer uma dessas perspectivas. Você pode construir seu próprio modelo de papel do telhado da garagem ambígua de Sugihara. Para isso, basta seguir o passo a passo pelos links da página inicial de seu site.
A mais nova ilusão de Sugihara mostra um espelho que não reflete metade de um objeto sólido colocado à sua frente. Mas não precisa lançar mão do colar de alho nem da água benta: é uma questão de perspectiva, mais uma vez. A parte inferior (não refletida) da imagem é um desenho 2D que fica nivelado no chão e parece ganhar volume apenas de um ponto de vista específico. Para fazer o seu próprio hexágono pela metade, acesse o link com o nome “Quarta geração: objetos parcialmente invisíveis” no site de Sugihara. Para ter melhor efeito, incline o espelho ligeiramente para baixo.
UM PAR DE LUMINÁRIAS?
O psicólogo F. Richard Ferraro, da Universidade da Dakota do Norte, e sua esposa, Jacqueline Lee Foster Ferraro, estavam reorganizando a cozinha quando descobriram uma ilusão intrigante. Olhe para a imagem abaixo. Você vê duas luminárias ou uma e seu reflexo no espelho? Richard Ferraro sabia que eram duas porque tinha acabado de mover uma delas da sala de estar para a cozinha. Mas, enquanto estava sentado no sofá, ele não conseguia se livrar da sensação de que observava um único abajur refletido numa superfície (na realidade, uma passagem para a cozinha). O casal se juntou com a estudante Cassidy Brougham, da Universidade da Dakota do Norte, e mostrou essa mesma imagem a 100 estudantes do campus. A equipe revela que 72 pessoas viram uma luminária enquanto 28 enxergaram duas. A preferência do nosso sistema visual pelas explicações perceptuais mais fáceis para o que vemos ao redor, o chamado princípio da simplicidade, pode explicar essa inclinação.
SUSANA MARTINEZ-CONDE e STEPHEN L. MACKNIK são professores de oftalmologia do Centro Médico SUNY Downstate, em Nova York. São coautores do livro Truques da mente (Zahar, 2011).
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