NUANCES DO SILÊNCIO
Adaptado do livro Um pai de cinema, do autor de O carteiro e o poeta, o filme dirigido por Selton Mello recorre a imagens delicadas para falar de melancolia.
Quais os caminhos possíveis para comunicar algo? Em princípio, algumas estratégias como palavras, sinais e imagens seriam as respostas mais evidentes. Mas e o silêncio? A ausência de sons também pode ser forma importante de comunicação. Psicanalistas costumam dar ao silêncio atenção especial, e, muitas vezes, a percepção das sutilezas de seus matizes é fundamental no trabalho clínico. Há, por exemplo, o silêncio da angústia, dos momentos de paz e das implosões mudas de ódio. No livro O silêncio na psicanálise (Zahar, 2010), J. D. Nasio diz que “o silêncio está sempre presente em uma sessão de análise e seus efeitos são tão decisivos quanto uma palavra explicitamente anunciada”.
Numa adaptação do livro Um pai de cinema (Record, 2011), do chileno Antônio Skármeta, autor do conhecido O carteiro e o poeta (Record, 1996), O filme da minha vida, dirigido por Selton Mello, parece explorar outros meios de expressão além da linguagem verbal. Troca de olhares e respostas lacônicas estão presentes na obra marcada pela fotografia bem cuidada, com cenas bucólicas contemplativas, olhares intensos em primeiro plano e personagens caracterizados, que evocam um lirismo próximo ao sonho.
O filme da minha vida fala da experiência do jovem Tony diante da ausência inesperada do pai. Na década de 60, o personagem (interpretado por Johnny Massaro), filho de um francês e de uma brasileira, retorna a Remanso, sua cidade natal, nas Serras Gaúchas, para exercer a profissão de professor. O pai (vivido por Vincent Cassel) embarca no mesmo trem no qual o rapaz chega e abandona a cidade, sem dar explicações ou notícias. Apaixonado por livros e filmes, Tony passa os dias buscando entender o que teria causado o desaparecimento tão repentino e sem nenhuma razão clara. Ouvira dizer apenas que o pai retornara para a França e chega a escrever várias cartas, mas não obtém resposta. Apesar da dor e das intermináveis dúvidas sobre o paradeiro do grande companheiro de infância, tenta seguir seu caminho. Frequenta sessões de cinema, vive as primeiras experiências sexuais e fantasias românticas com a bela Luna (Bruna Linzmeyer), uma amiga da cidade por quem se apaixona. Os diálogos monossilábicos com a mãe, Sofia (Ondina Clais), e com o rústico vizinho Paco (Selton Mello) não são suficientes para tranquilizá-lo.
O ar introspectivo e tímido do rapaz é contornado pelo enredo entremeado por um universo dividido entre a vontade de viver e o sofrimento. A falta de informações convincentes sobre o destino do pai deixa uma espécie de sombra silenciosa, o vazio e a apreensão latente. É como se o “não dito” se tornasse maldito e a ânsia da resposta, um fantasma.
Em Luto e melancolia (2017), Freud aponta para a experiência de perda de um ente querido (ou mesmo de ideais) que acaba por gerar uma inibição dos interesses pelo mundo externo devido aos intensos sentimentos de dor. Muitas vezes, a revolta e a saudade se mesclam e acabam por causar uma turbulência psíquica que dificulta a elaboração. A culpa pode se instalar quando não há como nomear o que se sente ou buscar representações psíquicas para a angústia. É como se o objeto perdido vagasse internamente, numa experiência sem contornos. Para Freud, o estado melancólico não permanece associado apenas à perda do objeto amado, mas também traz a perda de uma parte de si mesmo, do ego. No caso de Tony, não houve sequer a oportunidade da despedida.
A ausência de palavras – que iluminariam a experiência – traz um hiato em sua história e impede a construção de sentidos que talvez permitissem que seguisse em frente. E essa falta parece lhe tirar a coragem.
No entanto, a vila prepara surpresas. O trem que leva Tony à cidade vizinha para desfrutar das atrações do cinema carrega também os filmes a serem projetados numa metáfora poética que sugere sua tentativa de encontrar uma saída para seus impasses pessoais. Em dado momento, o reencontro com o pai termina por trazer à tona a verdade sobre o afastamento. Nesse momento, uma nova trama começa a se delinear e o filme ganha novo ritmo. Nas conversas entre os dois, é possível desfazer as mentiras, retomar a proximidade e nutrir a troca de afetos, na qual palavras ganham coerência. O que estava petrificado no silêncio ganha movimento, fecha a ferida e abre espaço para novos desejos.
Da melancolia, fruto de uma vivência na qual as emoções e a esperança não encontravam eco, surgem para o personagem o alívio e a libertação que permitiram dar sequência à própria vida, resgatando seu lugar como filho e abrindo oportunidade para construir seu lugar no mundo – como se assumisse a direção de seu próprio filme.
ERANE PALADINO – é psicóloga e psicanalista, mestre em psicologia social, professora do Instituto Sedes Sapientiae.
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