(RE) ORIENTAÇÃO SEXUAL
Várias tentativas de normatizar e “curar” orientações homossexuais têm efeitos iatrogênicos, ou seja, além de serem ineficazes, prejudicam o paciente; nesse contexto, a tarefa do psicoterapeuta é separar o sujeito de sua alienação de ideais sociais que lhe impõem a renúncia ao desejo.
Estes tempos de pós-verdade e vale-tudo jurídico habilitaram o retorno de antigas teses regressivas em matéria de psicologia. Recentemente, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho expediu uma liminar suspendendo as disposições do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de 1990, que vetavam o tratamento e a cura das homossexualidades. Ele indica textualmente que tal resolução não deve ser interpretada de modo a impedir psicólogos de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do Conselho Federal de Psicologia (CFP)”. Os argumentos remontam à liberdade de pesquisa científica, à inquietação social em torno de “práticas sexuais desviantes”, à censura, ao preconceito e à discriminação praticada pelo CFP e ao direito dos “eventuais interessados neste tipo de assistência psicológica”. A ciência, o interesse social, as instituições reguladoras e o direito do “consumidor” ficaram assim “agraciados” com essa nova forma de liberdade.
Por um truque retórico, o magistrado separa “tratamento, cura das homossexualidades”, sua patologização ou “ação coercitiva para tratamentos não solicitados” do que seria o “estudo ou atendimento profissional pertinente à (re) orientação sexual”. Ora, desde que na edição de 1973 da terceira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III) a homossexualidade foi retirada da condição de transtorno (disorder), iniciou-se um processo de renomeação de abordagens com o intuito de justificar a prática como reconversão, reorientação e reparação. Quase todas essas tentativas provêm de grupos que alinham princípios psicoterapêuticos com abordagens religiosas. É o caso também dos dois projetos de lei que tramitam no Congresso com o objetivo de alterar o veto do CFP.
Ocorre que esta não é apenas uma matéria inócua, que a experiência poderia resolver deixando-se a deliberação livre para o mercado dos consumidores de psicoterapias. Pouco se debate, mas várias delas têm efeitos iatrogênicos, ou seja, não apenas não apresentam eficácia ou eficiência reduzida, mas prejudicam o paciente. A apresentação de uma liminar desse tipo também deveria ser incluída como um desserviço social de nosso sistema judiciário. Isso ocorre porque nossa relação com a sexualidade, seja no âmbito da identidade de gênero, seja na esfera de nossas modalidades preferenciais de prazer ou, ainda, de nossas escolhas de fantasia, depende de como somos lidos e como nos interpretamos em relação ao Outro. Portanto, o sentimento de adequação ou inadequação e o reconhecimento ou a derrogação de reconhecimento alteram efetivamente nossa relação com a sexualidade.
Um prazer proibido é diferente de um prazer auto imposto ou socialmente sancionado. A sexualidade humana é sempre dissonante de si mesma, e quase sempre envolve demandas de adequação, se não do ponto de vista comportamental, em relação aos efeitos das fantasias pessoais que os outros fazem sobre as nossas fantasias. Por isso, a tentação de utilizar instâncias socialmente universalizantes como o direito, a religião ou a ciência para manipular tais disposições será muito grande. Isso ocorre por querermos trocar o sentimento de inadequação pelo trabalho de adequação à fantasia alheia.
Diante dessa injunção, a tarefa do psicoterapeuta é separar o sujeito de sua alienação de ideais sociais que lhe impõem a renúncia ao desejo. Por isso, o pedido, a reza, a mais sólida deliberação do espírito, a soberana vontade do consumidor, ou a mais grotesca justificativa jurídico-moral não são suficientes para nos fazer colocar o sujeito contra seus próprios desejos, sejam eles homo, hetero, bi ou n-sexuais.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER – é psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
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