
EQM – NA CABEÇA DE QUEM VOLTOU DA MORTE
O fenômeno fascina leigos com relatos da visão do próprio corpo observado do teto, imagens de túneis que levam à luz e o encontro com parentes e amigos já falecidos. Para psicólogos, médicos e neurocientistas, esse estado de consciência tão específico, relatado por pessoas em todo o planeta, pode revelar informações importantes sobre o funcionamento do cérebro e da mente.
Em 1943, Georgie Ritchie escreveu o livro Voltar do amanhã (Nórdica, 1980), no qual conta que, quando era um jovem soldado, foi convocado para se apresentar num batalhão cuja sede ficava no meio do deserto. Durante vários dias foi açoitado por uma tempestade de areia e contraiu pneumonia, numa época em que ainda não havia antibióticos. Após um período de febre intensa e violentas dores no peito, foi declarado morto e colocado num pequeno cubículo, envolvido por lençóis. Um enfermeiro, porém, convenceu o médico de plantão a aplicar uma injeção de adrenalina no coração do jovem soldado. Depois de ter estado “morto” durante nove minutos, Ritchie recobrou a consciência, para grande espanto de todos, e confessou que durante esse tempo viveu uma experiência intensa, da qual se lembrava perfeitamente bem.
No início ele evitava falar sobre o assunto, pois temia a opinião alheia. Mais tarde escreveu o livro sobre o que lhe aconteceu naqueles nove minutos. Posteriormente, formou-se em medicina e fez residência em psiquiatria. Tornou-se professor e passou a evocar sua experiência durante as aulas. Um desses futuros médicos, Raymond Moody, ficou de tal forma intrigado com o relato de Ritchie que começou a pesquisar o que poderia se passar com os pacientes durante situações críticas. Em 1975, Moody publicou A vida depois da vida (Butterfly Editora, 2004), na qual cunhou o termo near death experience – em português, experiência de quase morte (EQM).
Depois do relato de Moody, numerosos casos de EQM foram descritos na literatura médica. O cardiologista holandês Pin van Lommel, autor de Consciousness beyond life: the science of the near-death experience (Harper, 2010), publicou em 2001 na revista The Lancet uma série de 344 casos de EQM num estudo prospectivo em hospitais da Holanda. Van Lommel e sua equipe revisaram os prontuários e ouviram o relato desses pacientes. Foram analisados o tempo de parada cardiorrespiratória (PCR), as drogas utilizadas na reanimação e o resultado dos exames realizados no período de reanimação.
Ao publicar seu primeiro livro, em 1975, Moody descreveu os elementos característicos das EQMs, enfatizando que a maior parte das pessoas experimenta apenas alguns deles. Cada EQM é uma experiência única, vivida de forma coerente, e não como uma série de elementos distintos. A ordem em que as vivências são citadas pode variar. Há trabalhos comparativos entre os elementos descritos antes e depois de 1975. Esses estudos procuraram averiguar se a enorme publicidade dada ao livro de Moody teria influenciado o conteúdo dos relatos de EQM. Autores concluíram que os relatos são semelhantes, exceto talvez a referência ao túnel, menos frequentemente citado antes de 1975. Mas as EQMs e seus efeitos sobre as pessoas que a vivenciaram parecem ser os mesmos no mundo inteiro. Algumas poucas diferenças podem ser atribuídas à cultura. Um estudo transcultural mostra que alguns elementos, como o filme da vida do sujeito e a experiência do túnel, são menos comumente relatados pelas populações indígenas da América do Norte, da Austrália e das ilhas do Pacífico Sul.
POR QUE ISSO ACONTECE?
Várias hipóteses têm sido aventadas para explicar o fenômeno. Em 2001, o doutor em medicina Sam Parnia e seus colaboradores da Universidade de Southampton, no Reino Unido, realizaram estudo prospectivo de EQMs ocorridas durante PCR. Durante um ano, eles entrevistaram sobreviventes das unidades coronariana e de emergência do Hospital Geral de Southampton. Dos 63 pacientes ouvidos, apenas sete (11%) do total relataram alguma memória do momento da reanimação, dos quais quatro preencheram os critérios para EQM (6,3%), e a citaram como agradável. Embora o estudo de Parnia não obtivesse um número de pacientes com EQM suficiente para comparações estatísticas, houve uma pequena diferença entre os grupos quanto aos níveis médios de sódio e potássio, pressão parcial de CO2 (pCO2) ou medicamentos administrados durante a parada cardíaca. Curiosamente, pessoas que passaram por EQMs tiveram pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (pO2) duas vezes mais elevada do que no grupo de controle.
No amplo trabalho prospectivo realizado por Van Lommel, também em 2001, foram analisados 344 pacientes em dez hospitais da Holanda. Todos estiveram clinicamente mortos e foram submetidos à ressuscitação cardiorrespiratória (RCR) bem-sucedida. Do total, 62 (18%) relataram alguma recordação durante o tempo de morte clínica, 21 (6%) tiveram uma EQM superficial e 41 (12%), EQM significativa. Entre estes últimos, 23 (7%) relataram EQM profunda ou muito profunda. Van Lommel não conseguiu associar nenhuma causa psicológica, neurofisiológica ou farmacológica para explicar a experiência.
Em pesquisa publicada em 2003, o pesquisador da Universidade de Michigan Bruce Greyson, autor da escala que caracteriza a profundidade das EQMs, entrevistou pacientes nos primeiros seis dias de internação na unidade de tratamento cardíaco e na unidade semi-intensiva de cardiologia do Hospital da Universidade da Virgínia. Dos 1.595 incluídos na amostra, 27 (2%) preencheram os critérios para a EQM. Daqueles que relataram EQM, 41% tiveram parada cardíaca, 26%, infarto do miocárdio, 22%, angina instável e 11%, outros diagnósticos cardíacos. Dos 105 com parada cardíaca, 10% tiveram EQM; outros 81 (5%) descreveram EQM que ocorreram durante um episódio anterior que envolveu risco de vida. Greyson não encontrou nenhuma correlação entre várias medidas médicas, incluindo proximidade objetiva da morte (por exemplo, perda de sinais vitais), índice de prognóstico coronariano e classificação da função cardíaca com a incidência de EQMs. No entanto, os pacientes internados com parada cardíaca relataram, de forma enfática, mais EQMs (10%) do que os pacientes internados com outros diagnósticos cardíacos (3%).
A alteração de oxigênio e gás carbônico ocorrida durante a parada cardíaca em pacientes que tiveram EQM foi pesquisada por Klemenc-Ketis e colaboradores da Universidade de Maribor, na Eslovênia, em 2010. Eles pesquisaram medidas de pressão parcial de CO2 exalado no final da expiração (petCO2), pCO2, pO2 e níveis de sódio e de potássio séricos. Pacientes com petCO2 e pCO2 mais elevados relataram significativamente mais EQM. As pontuações das EQMs também foram positivamente correlacionadas com os níveis de pCO2 e potássio sérico. Os pacientes com pO2 mais baixo tiveram mais EQM, porém a diferença não foi expressiva.
Citado por Van Lommel, um dos mais emblemáticos casos de EQM se refere a uma jovem mulher que, operada de um aneurisma cerebral, teve uma EQM profunda na cirurgia. Durante o procedimento, seu corpo foi resfriado e foi realizada circulação extracorpórea. Ela estava sob efeito de anestesia geral, os olhos estavam cobertos por bandagens para evitar ressecamento e foram colocados tampões nos ouvidos. Apesar de não ter nenhuma atividade elétrica cortical e no tronco encefálico, a paciente passou por uma profunda EQM. Ela se surpreendeu ao ver que um médico tentava realizar algum procedimento na região de sua virilha direita e o ouviu dizer ao neurocirurgião que “não estava conseguindo…”. Seu interlocutor sugeriu então que ele que fosse para o outro lado da mesa cirúrgica. Tratava-se da canalização da artéria femoral para realizar a circulação extracorpórea. A moça havia sido informada de que sua cabeça seria aberta com uma serra, mas o que viu na mão do médico foi um objeto parecido com sua escova de dentes elétrica. Ela descreveu inúmeras situações ocorridas na sala de cirurgia – as quais, estando ela anestesiada, com o corpo resfriado, o coração parado e o cérebro inativado, jamais poderiam ter sido percebidas. A equipe cirúrgica confirmou todos os relatos, embora nenhum profissional conseguisse explicar como a jovem pôde ter acesso a todas essas informações.
A mais abrangente pesquisa sobre EQM realizada até o momento foi o estudo multicêntrico dirigido por Sam Parnia, diretor do The Human Consciousness Project, da Universidade de Southampton, o AWARE (Awareness during Resuscitation), concluído em 2008 e publicado em 2014. Durante quatro anos foram entrevistados 2.060 sobreviventes de parada cardíaca em 15 hospitais dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. Todos foram submetidos a testes específicos com o propósito de identificar a incidência e a validade de relatos de consciência durante parada cardíaca. Para avaliar a precisão das alegações de percepção visual durante a parada cardíaca, cada hospital instalou entre 50 e 100 prateleiras em áreas onde a ressuscitação de paradas cardíacas era considerada provável de ocorrer. Cada prateleira continha uma imagem apenas visível acima dela. Estas imagens foram instaladas para permitir a avaliação de relatos de consciência visual.
Entre as 2.060 pessoas, 140 sobreviventes fizeram as entrevistas da fase 1, enquanto 101 dos 140 pacientes completaram a etapa 2. Do total, 46% relataram memórias com sete temas cognitivos principais: medo; animais/ plantas; luz brilhante; violência/perseguição; déjà-vu; família; recordações de eventos pós-parada cardíaca. Apenas 9% tiveram EQM e 2% descreveram a recordação explícita de ver e ouvir eventos reais relacionados à sua ressuscitação. Entre os que apresentaram EQM não houve registro de pacientes que contaram ter visto os alvos colocados nas prateleiras. O argumento para a não visualização desses objetos é que 78% das paradas cardíacas ocorreram em locais onde não havia prateleiras com alvos previamente colocados.
Os autores do estudo concluíram que os sobreviventes de parada cardíaca vivenciaram ampla gama de memórias após PCR, incluindo experiências assustadoras e persecutórias, e que tiveram momentos em que acreditavam estar conscientes. Os pesquisadores reconhecem, porém, que outros estudos são necessários para delinear o papel explícito e implícito da parada cardíaca e seu impacto na ocorrência de eventuais transtornos de estresse pós-traumático (TEPT) entre os sobreviventes.
PESSOAS CEGAS
Os doutores em psicologia Sharon Cooper, professora da Universidade de Nova York, e o professor Kennety Ring, da Universidade de Connecticut, cofundador e ex-presidente da Associação Internacional para Estudos de Quase-Morte, analisaram vários casos de pessoas cegas que relataram o fenômeno. Um dos casos é o de Vicki Umipeg, uma mulher de 43 anos, moradora do estado de Washington, que teve duas EQMs. A primeira, quando ela tinha 12 anos de idade, ocorreu em 12 de fevereiro de 1962, quando teve uma crise de apendicite e peritonite. A segunda foi quase exatamente uma década depois, na noite de 2 de fevereiro de 1973, quando foi gravemente ferida num acidente de automóvel.
Vicki nasceu prematura, com apenas 1,5 kg, na 22a semana de gestação. Como era comum ocorrer com crianças prematuras na metade do século 20, foi colocada numa incubadora para administração de oxigênio, mas houve falha na regulagem da quantidade de oxigênio e Vicki recebeu uma dose excessiva, que provocou lesão definitiva nos nervos ópticos dos dois olhos. Em razão disso, ela nunca teve experiência visual durante toda a sua vida.
Das duas EQMs, a mais vívida e detalhada foi a ocorrida aos 22 anos. No início de 1973, Vicki, trabalhava eventualmente como cantora em uma casa noturna em Seattle. Uma noite, após a apresentação, ela não conseguiu chamar um taxi para levá-la para casa. A única opção era aceitar carona do casal de patrões, embora ambos estivessem embriagados. Na viagem ocorreu um sério acidente e Vicki foi jogada para fora do veículo. Sofreu fratura de crânio e concussão cerebral, lesões no pescoço e nas costas e quebrou uma perna.
Vicki lembra-se claramente dos segundos que antecederam o acidente, mas tem lembranças nebulosas de ter estado “fora do corpo” – foi quando diz ter visto, de vislumbre, o veículo amassado. Foi nesse momento que ela afirma ter tido a sensação de que se encontrava num corpo não físico “como se fosse feito de luz”. Ela não se recorda da sua ida para o hospital na ambulância, mas, quando chegou à sala de emergência, recobrou a consciência e estava no teto do cômodo, assistindo a um médico e a uma mulher (ela não soube especificar se era médica ou enfermeira) trabalhando em seu corpo. Ela ouvia a conversa entre eles, que comentavam a ocorrência de um possível dano do tímpano e falavam do receio de que, além de cega, ela se tornasse surda. Vicki tentou desesperadamente se comunicar com eles dizendo que estava bem, mas obviamente não obteve resposta. Ela estava consciente de ver o próprio corpo abaixo dela.
Ela primeiro percebeu uma imagem muito fraca de si mesma deitada na maca de metal e estava segura de que fosse ela, embora tenha levado um momento para registrar esse fato com certeza. Em seu relato diz: “Sabia que era eu… Eu era muito magra, na época. Era muito alta e magra. E eu reconheci que era um corpo, mas nem sabia que era o meu, inicialmente. Quando eu percebi, estava no teto e pensei: ‘Isso é meio estranho. O que estou fazendo aqui em cima? ’. Em seguida pensei: “Bem, este deve ser eu, será que estou morta”? ’. Só vi esse corpo brevemente, sabia que era o meu porque eu estava fora dele. Eu estava longe dele”.
Ela relata que depois disso se viu subindo pelo teto do hospital até que alcançou do telhado do edifício. Desfrutou da vista panorâmica e sentiu-se inundada por uma intensa sensação de alegria, liberdade e movimento. Em seguida se deu conta de que ouvia uma música harmoniosa, bastante agradável, “semelhante ao som de sinos ao vento” e percebeu que estava sendo sugada pela cabeça para dentro de um túnel. “O lugar era escuro, mas estava ciente de que me movia em direção a uma luz”, diz.
Quando alcançou a abertura do túnel, a música que tinha ouvido antes se transformara em hino (semelhante ao que ela escutou anos mais tarde, na EQM posterior). Então ela “rolou para fora” e deu-se conta de que estava deitada na grama. Estava rodeada por árvores e flores e grande número de pessoas, em um lugar de intensa luz, que podia sentir tão bem quanto ver. Até as pessoas que ela viu eram brilhantes. “A luz transmitia paz, amor e era como se isso viesse do ambiente, dos pássaros e das árvores.”
Vicki então tomou consciência da presença de pessoas que ela havia conhecido em vida e a estavam acolhendo naquele lugar. Havia cinco pessoas já falecidas que ela conhecera. Diane e Debby eram colegas cegas da escola, com 6 e 11 anos, respectivamente, na época de sua morte. Além de cegas, ambas tinham um retardo mental profundo, mas agora pareciam brilhantes, belas, saudáveis – e muito vivas. E já não eram crianças. Vicki distinguiu ainda um casal de cuidadores seus na infância, o senhor e senhora Zilk. Finalmente, Vicki viu sua avó, que se aproximou para abraçá-la. Vicki disse que, nesses encontros, nenhuma palavra foi dita: mas tinha consciência dos sentimentos de amor e bem-estar. No meio desse arrebatamento, ela de repente foi dominada por uma sensação de conhecimento total. “Tive a impressão de que sabia tudo e de que tudo fazia sentido. Eu só sabia que este era o lugar onde eu iria encontrar as respostas para todas as perguntas sobre a vida, sobre os planetas, sobre Deus e sobre tudo… Era como se o lugar fosse o próprio conhecimento.”
Ela relata que, em dado momento, se viu na presença de um “ser de luz”, profundamente amoroso, que lhe mostrou uma espécie de filme de toda a sua vida e a advertiu de que ela deveria voltar. “Em seguida, fui conduzida de volta ao meu corpo, que estava terrivelmente doloroso, muito pesado, e me lembro que eu me senti muito mal.”.
O ponto mais discutível na EQM de Vicki e de todos os pacientes cegos de nascença é a questão de como alguém que nunca teve experiência da visão possa, de repente, ver – e compreender o que está vendo. O cego de nascença tem a experiência das formas (pois pode tocar), do olfato, da audição e das palavras, mas nunca viu absolutamente nada. E nem sequer tem a experiência do que significa ver. Em última análise, pode-se perguntar como uma pessoa em coma devido a graves lesões cerebrais, cega desde o nascimento, pode ter visões tão nítidas, algumas das quais puderam ser comprovadas. O que se sabe com certeza é que os relatos de pessoas cegas que passaram por EQM constituem um desafio para a ciência e nos obriga a repensar o que sabemos sobre consciência e cérebro.
CASOS DE EPILEPSIA
Pacientes com epilepsia do lobo temporal têm sido objeto de estudo por apresentarem manifestações críticas parecidas com as descritas em EQM. Os doutores em psicologia e neurociência Willoughby B. Britton e Richard R. Bootzim, da Universidade do Arizona, analisaram 43 pacientes com epilepsia temporal, dos quais 23 apresentaram EQM com pontuação mínima na escala de Greyson.
Um trabalho publicado na Nature por Olaf Blanke, diretor do Laboratório de Neurociência Cognitiva do Instituto Cérebro-Mente, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, teve grande repercussão nos meios científicos e na mídia em geral. Ele descreveu o caso de uma paciente epiléptica que, após estimulação elétrica do córtex do giro angular, viveu a sensação de sair do corpo. Como ela se viu no teto do centro cirúrgico, mas teve uma visão deformada de suas pernas, o fenômeno é chamado pelos especialistas de “incompleto”.
Em outro artigo, Blanke propôs uma nova explicação neurológica para esse fenômeno. O pesquisador descreveu seis pacientes, três com relatos de saídas do corpo atípicas e incompletas, que não tiveram percepção “a partir do teto” de elementos verificáveis concernentes a eles mesmos ou ao ambiente. Quatro deles relataram ter tido a visão de seu próprio duplo a partir do seu corpo. Blanke considerou a de corporação como “uma ilusão causada pela disfunção temporária ou lesão no lobo temporal e ou parietal”.
O pesquisador Michael Persinger, que realizou grande número de experimentos de estimulação magnética transcraniana, afirma ter desencadeado fenômenos psíquicos causados pelo bloqueio ou pela estimulação de campos eletromagnéticos do cérebro. Os fenômenos são episódios próximos do sonho, semimísticos, com luz ou música e sensação da presença de outros seres. Essas informações guardam alguma semelhança com as descrições de uma EQM. Por outro lado, o trabalho de Persinger não foi corroborado por experimentos semelhantes realizados na Suécia, onde os pacientes nem sequer sabiam que seriam estimulados.
SOB EFEITO DE DROGAS
Apesar de intensos esforços de cientistas, nenhum estudo esclarece completamente ainda como um indivíduo é capaz de manter a consciência de forma aguda ou mais alerta em uma situação de quase morte. Mas algumas situações são capazes de provocar experiências parecidas, como o aumento de concentração sanguínea de CO2 (hipercapnia) e a hipóxia cerebral por baixa perfusão sanguínea resultante da aceleração rápida de pilotos de avião, bem como a hiperventilação seguida por manobra de Valsava (diminuição do fluxo sanguíneo venoso para o coração, o que faz com que os batimentos sejam acelerados e a pressão arterial se eleve de modo a não faltar sangue e oxigênio para o cérebro; para pessoas saudáveis e treinadas, essa manobra não traz nenhuma consequência prejudicial).
O efeito foi constatado também após a ingestão de algumas drogas, como ketamina. O papel das endorfinas, das encefalinas e da serotonina também tem sido mencionado, da mesma forma que experiências fora do corpo foram relatadas com o uso de LSD, psilocarpina e mescalina. Essas vivências induzidas podem consistir em períodos de inconsciência, sensação de estar fora si, flash ou luzes e recordações de cenas do passado. Tais lembranças, no entanto, consistem em fragmentos e memórias aleatórias, e não em uma revisão panorâmica da própria vida relatada durante a EQM. Por outro lado, a transformação pessoal do modo de vida e a perda do medo da morte raramente ocorrem nas situações induzidas. É sabido que drogas de fato podem produzir efeitos alucinógenos e sensações muito parecidas com as descrições de pessoas que tiveram EQM. É o caso do LSD e da dimetiltriptamina (DMT), porém, no caso desta última, os efeitos são muito breves porque é rapidamente decomposta pelo organismo.
Pim van Lommel enfatiza que é muito provável que o DMT naturalmente produzido pelo corpo pode ter papel importante na experiência de consciência ampliada durante EQM. Sua liberação, provocada ou estimulada por acontecimentos dos quais temos consciência, reduziria as inibições naturais de nosso organismo e proporcionaria a ampliação da consciência – como se ela fosse capaz de bloquear ou interromper a interface entre consciência e corpo (e cérebro). O autor salienta que o zinco é indispensável à síntese da serotonina e outras substâncias do mesmo tipo, como o DMT, por exemplo. Com o avançar da idade, a taxa desse metal no organismo diminui – o que talvez ajude a explicar o fato de que a taxa de EQM diminui com a idade. Tudo indica, no entanto, que algum outro mecanismo neurofisiológico desconhecido e neuro-humoral, no nível subcelular do cérebro, pode exercer papel importante em situações críticas, como a morte clínica.
Com a falta de evidências ou outra teoria sobre EQM, a ideia até agora assumida – mas nunca comprovada – de que a consciência e as memórias estão localizadas no cérebro deve ser discutida. Como poderia uma consciência claramente fora do corpo ser experimentada no momento em que o cérebro já não funciona durante um período de morte clínica, sem registro de atividade elétrica no cérebro? Por outro lado, durante parada cardíaca, o eletroencefalograma (EEG) torna-se isoelétrico, na maioria dos casos, após dez segundos do início da síncope. Além disso, pessoas cegas descreveram a percepção visual durante experiências fora do corpo no momento dessa vivência. As EQMs vão ao limite das ideias médicas a respeito da consciência e da relação mente-cérebro. Alguns autores, entretanto, admitem que as experiências de quase morte podem ocorrer em decorrência do estado de mudança da consciência, no qual a identidade, a cognição e a emoção funcionam independentemente do corpo inconsciente, mas retêm a possibilidade de percepção não sensorial. Qualquer que seja a explicação para os relatos de EQM, o fato é que os conhecimentos atuais excluem a possibilidade de formular uma teoria integrada para explicar esse fenômeno, o que deve servir de motivação e estímulo para novas pesquisas.
O QUE É EQM?
Uma experiência de quase morte (EQM) é a lembrança (recontada) de todas as impressões experimentadas durante um estado de consciência particular, marcada por elementos específicos como visão de túnel, luz, filme da própria vida, personagens mortos ou associados ao momento da reanimação. Segundo o médico Pim van Lommel, esse estado mental pode se produzir durante uma parada cardíaca, o chamado período de morte clínica, mas também durante uma doença grave ou mesmo sem causa médica aparente. A experiência provoca quase sempre mudanças essenciais e duráveis na atitude da pessoa em relação à vida, incluindo a perda do medo da morte.
Trata-se de uma vivência altamente subjetiva e pessoal, mas fatores individuais, culturais e religiosos determinam a maneira como esses fenômenos são descritos e interpretados. Uma criança provavelmente não empregaria as mesmas palavras que um adulto, e o testemunho de um cristão certamente é diferente do de um budista ou de um agnóstico.
“As experiências de quase morte são eventos psicológicos profundos, contendo elementos transcendentais e místicos, que se produzem geralmente nos indivíduos próximos da morte ou em situação de dano físico ou emocional grave”, diz o psiquiatra Bruce Greyson, pesquisador da Universidade de Michigan e autor da escala que caracteriza a profundidade das EQMs.
MEMÓRIAS DO OUTRO LADO

Moody e outros autores destacam pontos em comum encontrados nos relatos de pessoas que passaram por essa situação.
- Apesar de os pacientes estarem em situação de doença grave ou acidente, a sensação emocional prevalente é de bem-estar, paz e alegria.
- A atividade mental se torna mais aguçada; a lembrança é clara e as pessoas têm a convicção de que ela é até mais real do que as vividas no estado de vigília.
- Ainda assim, apresentam dificuldade para explicar a vivência e relatam que não conseguem expressar com palavras a amplitude do que viveram.
- Pessoas se referem à sensação de viver experiências fora do corpo (EFCs) como se observassem “de fora de si” eventos que transcorreram próximos a elas ou em um local distante
- Muitos falam de ter, em algum momento, passado por uma região de escuridão ou por um túnel sem luz.
- É frequente citarem que, após essa travessia pela escuridão, veem um cenário de grande beleza.
- Geralmente, em algum momento da experiência encontram parentes e amigos já falecidos.
- Fazem referência a uma luz extraordinariamente brilhante que, no entanto, não ofusca a visão, às vezes percebida como um “ser de luz” que emana aceitação, amor incondicional e pode comunicar-se telepaticamente – Pacientes costumam se lembrar de ver e reviver acontecimentos importantes e incidentais de sua vida como se fosse um filme.
- Em dado momento da vivência, percebem que chegaram a uma espécie de fronteira além da qual não podem ir.
- Têm a sensação de ter “retornado” ao corpo físico de forma involuntária, algo muitas vezes vivido com desagrado, dada a paz que sentiam antes.
FELIPE LEAL é psiquiatra, mestrando em antropologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
MATEUS SILVESTRIN é psicólogo, mestrado em neurociência e cognição pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
RAQUEL GIACÓIA LEAL é psiquiatra do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise (Nesme).
EDSON AMÂNCIO é neurocirurgião, pós-graduado pela Unifesp. Os autores agradecem ao físico teórico Carlos de Moura Ribeiro Mendes as inúmeras sugestões e o entusiasmo com esta publicação.
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