Quando nossas escolhas envolvem valores éticos – como sacrificar algumas vidas para salvar outras tantas – entram em jogo complexos mecanismos psíquicos e neurológicos. Pesquisadores tentam entender esses processos.
De que maneira o que sentimos afeta nosso julgamento sobre o que é certo ou errado? Um estudo publicado na Nature apresenta uma importante concepção sobre a relação entre raciocínio moral e emoção. Os pesquisadores Michael Koenigs, pós-doutorando do Instituto Nacional de Transtornos Neurológicos e Acidente Vascular Cerebral (AVC), Liane Young, aluna de pós-graduação em psicologia cognitiva da Universidade Harvard descobriram que uma lesão no córtex pré-frontal ventromedial (CPFVM, uma região do cérebro localizada acima das órbitas dos olhos) aumenta a preferência por escolhas “utilitárias” em situações de dilema moral.
Koenigs e Young aplicaram um teste sobre tomada de decisão moral em três grupos: um deles formado por seis pacientes com lesão bilateral de CPFVM; outro constituído por pessoas com lesões em outras regiões do cérebro, e um terceiro, o grupo de controle, formado por indivíduos neurologicamente saudáveis. As pessoas submetidas ao teste enfrentaram situações de tomada de decisão em quatro classes. Uma delas continha cenários morais “pessoais de alto conflito” moralmente ambíguas) e emocionalmente incômodas; exigia que o voluntário optasse entre empurrar ou não um estranho, obeso, em direção aos trilhos de um trem descontrolado (o que, consequentemente, o mataria) para salvar a vida de cinco trabalhadores adiante na linha.
Uma segunda classe apresentava possibilidades de “baixo conflito” (sem ambiguidade moral), mas altamente pessoais, tais como se seria correto que um homem contratasse alguém para estuprar a esposa para que, depois, pudesse consolá-la e reconquistar seu amor. Uma terceira classe oferecia situações moralmente ambíguas, mas relativamente impessoais, como se seria certo mentir para um segurança e “tomar emprestada” uma lancha veloz para avisar os turistas sobre uma tempestade mortal iminente. Uma quarta classe consistiu em fazer escolhas amorais, como tomar um trem em vez de ônibus para chegar pontualmente a algum lugar.
Nas situações bem definidas de baixo conflito pessoal, os pacientes com lesão no córtex pré-frontal ventromedial e os indivíduos do grupo de controle tiveram desempenhos semelhantes, respondendo unanimemente de forma negativa a exemplos semelhantes. Mas, ao ponderarem sobre as situações com implicações emocionais, mais carregadas de ambiguidade, os pacientes com lesão de CPFVM apresentaram probabilidade muito maior que os demais de endossar decisões utilitárias que levariam a um maior bem-estar agregado. Eles se mostraram muito mais dispostos que os demais a, por exemplo, empurrar um passageiro qualquer na frente do trem para salvar um grupo de trabalhadores no caminho adiante.
Por que as pessoas com lesão no CPFVM deveriam exibir maior preferência por escolhas utilitárias? É tentador atribuir a preferência a um embotamento emocional geral – um traço habitualmente encontrado nos pacientes com lesão pré-frontal. Emoção diminuída supostamente os tornaria especialmente propensos ao raciocínio utilitário. Mas uma pesquisa anterior realizada por Koenigs e Daniel Tranel, professor de neurologia dos Hospitais e Clínicas da Universidade de Iowa, com pacientes com lesão no CPFVM mostra o oposto. No estudo, os voluntários participavam do “jogo do ultimato”. Nessa atividade, é oferecida uma soma em dinheiro a um par de jogadores. O jogador A propõe alguma divisão do dinheiro com o parceiro B; se este último rejeitar os termos da divisão, nenhum deles recebe nenhum dinheiro. Para o jogador B, a decisão estritamente utilitária é aceitar qualquer proposta, mesmo que receba apenas 1% do dinheiro, já que a rejeição da oferta implica nenhum ganho. A maioria das pessoas, porém, rejeita ofertas excessivamente desequilibradas porque determinadas propostas ofendem seu senso de justiça. Os jogadores com lesão de CPFVM, contudo, rejeitaram com maior frequência as ofertas desequilibradas que os indivíduos do grupo de controle – aparentemente por se sentirem insultados pela proposta desigual, ainda que lucrativa, o que invalida os argumentos utilitários. Um embotamento emocional geral e um maior raciocínio utilitário parecem, portanto, explicações improváveis para o comportamento dos pacientes com lesão de CPFVM.
Uma causa mais parcimoniosa, apresentada como hipótese em um artigo da Nature Reviews Neuroscience, é que razão e emoção cooperaram para produzir sentimentos morais. O CPFVM teria especial influência nos chamados “sentimentos pró-sociais” – que incluem culpa, compaixão e empatia. Eles emergem quando estados como tristeza e afiliação, que se originam das áreas límbicas, são integrados com outros mecanismos mediados por setores anteriores do córtex pré-frontal ventromedial – como avaliação de possíveis desfechos. Estudos que utilizam técnicas de imageamento funcional corroboram esta ideia. Como descrevemos num artigo publicado no periódico científico Social Neuroscience e numa pesquisa anterior, o córtex participa ativamente não apenas dos processos explícitos de julgamento moral, mas também quando as pessoas são passivamente expostas a estímulos evocativos de sentimentos pró-sociais (como os despertados pela cena de uma criança com fome). Curiosamente, o CPFVM era acionado quando os voluntários optavam por sacrificar dinheiro para doar a obras de caridade – decisão que é, ao mesmo tempo, utilitária e emocional –, como descrevemos em um artigo do Proceedings of the National Academy of Sciences USA.
A deterioração dos sentimentos pró-sociais, resultante de lesão na parte ventral (ou lado de baixo) do córtex pré-frontal, juntamente com uma capacidade preservada de experimentar reações emocionais aversivas associadas à ira ou frustração (dependendo mais dos setores laterais do córtex e conexões subcorticais), poderiam explicar os resultados dos dois estudos de Koenigs. Os pacientes com lesão de CPFVM que participam do jogo do ultimato, por exemplo, deixam que emoções como raiva e desdém governem as decisões não utilitárias para rejeitar ofertas injustas. Os pacientes com lesão de CPFVM foram mais práticos – ou utilitários – ao enfrentar dilemas morais difíceis, justamente porque a lesão nas partes centrais do córtex pré-frontal reduziu os sentimentos pró-sociais, dando vantagem relativa ao raciocínio impiedoso.
A DECISÃO DO GÊNIO
Esta explicação pode nos fazer pensar no dilema histórico, vivido pelo físico Albert Einstein. A contribuição consciente do ganhador do Nobel ajudou os Estados Unidos a construírem as primeiras bombas atômicas, que causaram a morte de dezenas de milhares de civis – mas, ao fazê-lo, deram um fim à Segunda Guerra Mundial. Teria sido cruel a escolha utilitária de Einstein, resultante das emoções sendo subjugadas pela pura cognição? Acreditamos que não. Aparentemente, a razão e os sentimentos de Einstein estavam trabalhando juntos muito bem, refletindo a interação entre raciocínio lógico, emoção e capacidade empática – bem como angústia e ambivalência – que complexas decisões morais incitam.
Fonte: Revista Mente e Cérebro – Edição 300
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