A LINGUAGEM FLUIDA DO AFETO
Espécie de conto de fadas sombrio, com toques eróticos, filme dirigido por Guillermo del Toro lembra um sonho e fala de perto com o psiquismo.
Não por acaso o filme A forma da água tem atraído e emocionado tanto espectadores. Em si, a trama não traz grandes surpresas – é uma releitura da recorrente luta estereotipada entre o “bem” contra o “mal” (como se fosse possível separar o mundo nessas duas categorias). No entanto, quando vemos a dicotomia tão claramente apresentada, experimentamos certo alívio do qual nem sempre nos damos conta conscientemente: é relaxante que, ainda que por poucos minutos, saibamos com certeza onde está o “perigo”. Como um bom conto de fadas um tanto sombrio e com toques eróticos, o filme dirigido pelo mexicano Guillermo del Toro apresenta ingredientes que falam de perto com nosso psiquismo. E é do feitio dos contos de fadas evocar fantasia e riqueza simbólica.
Um tom onírico permeia as cenas. Na primeira delas, aliás, a protagonista Elisa (Sally Hawkins) sonha com um mundo submerso. Ao despertar, tudo se torna seco ao seu redor, mais duro e contundente. Mas, assim que se levanta, começa sua interação com a água – a que escorre da torneira, a que preenche o recipiente onde ferve ovos para o café da manhã, a banheira onde se masturba durante o banho, as gotículas que acompanha no vidro do ônibus no começo do dia (na verdade, da noite, pois ela trabalha no período noturno num centro de pesquisas de uma instalação militar como auxiliar de limpeza).
Muda, Elisa tem cicatrizes e um passado de abandono, também marcado pela proximidade com o rio que corta a cidade. Afetuosa, prescinde das palavras para se comunicar e fazer amigos. O vizinho Giles (Richard Jenkins), um pintor homossexual de meia-idade em busca de um amor e de uma chance profissional, e a melhor amiga, a tagarela Zelda Dalila (Octavia Spencer), sua colega de trabalho, são seus fiéis protetores.
O antagonista – verdadeiro monstro da história – é o militar Richard Strickland (Michael Shannon), o arquétipo do homem mau, sádico, misógino, abusivo e racista. A história se passa na década de 60, em plena Guerra Fria, quando Strickland captura um ser anfíbio (Doug Jones) de forma humanoide na América do Sul. Cultuada pelos povos nativos (possivelmente da Amazônia) como uma espécie de deus, a criatura é torturada pelo militar que insiste em afirmar seu poder e se manter no controle. Aquilo que ele não conhece ou não entende o apavora – e desperta sua ira. Nada o alegra, nada lhe parece suficiente: prevalece sempre uma aura soturna de dureza e infelicidade, como convém aos vilões.
Aos poucos, a faxineira se aproxima do anfíbio. Para ela, não há motivo de temor, oferece ovos e apresenta a ele uma de suas paixões, a música. A história de amor se torna inevitável: os dois são “incompletos” como diz Elisa, em linguagem de sinais (como se algum de nós fosse completo). Ainda assim, essa percepção os aproxima de forma delicada, em contraste com a brutalidade do autoritarismo e do poder sem sabedoria. Os dois se encontram em seus silêncios, em suas “estranhezas”.
Para a psicanálise, a relação com o que estranhamos tem sido matéria de atenção e estudo. Há quase um século, em 1919, Freud escreveu o ensaio Das Unheimliche, na maioria das vezes traduzido para o português como O estranho e, mais recentemente, como O inquietante (Companhia das Letras). Para Freud, o estranhamento tem origem em traumas da infância, é recalcado no inconsciente e se torna, ao mesmo tempo, “familiar” e “suspeito”. O criador da psicanálise considera que o inquietante é algo já conhecido, mas enclausurado. Quando sai de águas profundas e vem à tona, pode provocar medo. Mas também atrai o olhar, é difícil ficar indiferente.
O homem anfíbio, visto por Strickland e outros militares como monstruoso, na verdade espelha a própria monstruosidade de quem o olha. Já Elisa apreende no estranho a beleza e a possibilidade do encontro. A violência é às vezes explícita, às vezes latente – mas há saída, existe bondade e esperança. É possível que, por isso, além do conflito da história em si o que prevaleça seja a emergência dos conflitos pessoais e a possibilidade de vê-los, por algum tempo, flutuar leves, na cadência da água.
A linguagem proposta, assim como a usada por Elisa, foge ao convencional. Apesar do poder de cura, que se evidencia ao longo do filme, a criatura não confere a ela a recuperação da fala fluente. De fato, seu silêncio é, em alguns momentos, a sua libertação. Além do mais, embaixo d’água não há espaço para sons, pelo menos não para aqueles com os quais estamos acostumados. Para Elisa e sua criatura amada a comunicação se dá pelo afeto. Entre eles, a história é outra.
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