O PODER TERAPÊUTICO DA GRATIDÃO
O reconhecimento da gentileza e da bondade alheia gera um sentimento positivo, que nos torna felizes e abertos em relação à vida. Quanto mais manifestamos abertamente o reconhecimento, mais profunda costuma ser a sensação de bem-estar. Felizmente, essa habilidade pode ser Aprendida e exercitada.
De tempos em tempos algumas palavras se transformam em moda nas redes sociais, ganham lugar nas capas de livros de autoajuda e até em frases escritas em camisetas. “Gratidão” parece ser é um desses vocábulos. Indo além da possível banalização, nos últimos anos vários pesquisadores se dedicaram à realização de estudos sobre o tema. A maioria absoluta deles de fato mostra que praticar a gratidão – de forma consciente e deliberada, reconhecendo as coisas boas da própria vida – favorece a sensação geral de bem-estar. É compreensível que muitos textos sobre o assunto terminem com uma convocação para que o leitor inicie um diário de agradecimentos para colher todos os benefícios da gratidão. E certamente não há nada de errado com isso. Mas há outras finalidades desse sentimento a serem consideradas a médio e longo prazo: o fortalecimento dos vínculos afetivos com as pessoas com as quais nos relacionamos e o efeito de proteção à saúde mental.
A gratidão é um sentimento de profundo reconhecimento para com qualquer um que tenha sido gentil conosco, um estado de espírito que nos leva a oferecer algo em troca do favor recebido. O termo deriva do latim gratia, que quer dizer favor. E é exatamente ao favor, à generosidade e ao reconhecimento de uma doação – seja um presente ou um ato de cortesia – que a emoção está associada. De certa forma, esse sentimento pressupõe maturidade psíquica para reconhecer que o outro tem algo e pode oferecer – seja atenção, delicadeza, tempo, algum serviço ou bem material, por exemplo. Pessoas mais imaturas emocionalmente tendem a experimentar inveja ou desejo de atacar aquele que age de forma generosa, pois em algum nível se dão conta do óbvio: sempre nos falta algo e precisamos dos outros.
Para experimentar esse sentimento são necessárias duas etapas: de um lado, perceber que um evento positivo aconteceu em nossa vida e, de outro, reconhecer que foi provocado intencionalmente por alguém. Nesse sentido, a gratidão é um formidável veículo de bem-estar social. Vamos imaginar, por exemplo, um professor que dedica muitas horas de seu tempo para montar uma comédia musical com seus alunos, com a intenção de melhorar a atmosfera em sala de aula e transmitir à garotada maior entusiasmo com relação à escola. Caso nem os pais nem os próprios alunos demonstrem algum sinal de reconhecimento pelo trabalho, podem surgir decepções e tensão. Inversamente, se o professor receber agradecimentos e talvez até um presente coletivo, o gesto pode consolidar vínculos afetivos. Ou, eventualmente, provocar em algumas pessoas a sensação de que “são devedoras” de quem lhes dedicou algo. Para entender esses processos, é importante compreender alguns aspectos fundamentais para o bem-estar psicológico.
FAZ BEM PARA QUEM?
Há alguns anos, o pesquisador Jean Dumas, professor da Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, pediu que um grande número de voluntários avaliasse 800 traços de personalidade: os resultados demonstraram que a gratidão é uma das 30 qualidades mais apreciadas. Na realidade, não se trata de uma forma de submissão nem reflete um estado de espírito que diminui quem a experimenta. Acima de tudo, é um modo de relacionar-se com a vida. A “orientação para a gratidão” constitui um traço de personalidade – passível de ser desenvolvido e fortalecido. Reconhecer a importância do apoio alheio não é, de maneira alguma, incompatível com a consciência do valor dos esforços individuais. Um atleta, por exemplo, atribui seu sucesso à própria constância nos treinos, mas se possui um elevado grau de orientação para a gratidão irá considerar também essencial para a vitória a contribuição das pessoas que o cercam: a família pela paciência, o time pelo apoio, até mesmo os rivais que o impulsionaram a melhorar.
Inúmeros estudos têm revelado que pessoas orientadas ao reconhecimento tendem a ser mais dinâmicas, otimistas, empáticas e abertas a experimentar emoções positivas. Segundo a neurocientista Sonja Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia, em Riverside, quanto mais alto é o nível de orientação para a gratidão de uma pessoa, menos ela apresenta sintomas associados à ansiedade e depressão ou vivencia sentimentos de solidão, inveja e frustração. Além disso, os efeitos da gratidão costumam ser proporcionais à consciência dos eventos que nos inspiraram o reconhecimento. Num estudo desenvolvido na Universidade da Califórnia, em Davis, os doutores em psicologia Robert Emmons e Michael McCullough, ambos professores da instituição, dividiram alunos voluntários em três equipes. Os integrantes do primeiro grupo deveriam anotar uma vez por semana cinco eventos que lhes haviam provocado sentimento de gratidão; aos do segundo grupo, os cientistas pediram que fossem registradas cinco preocupações; e aos participantes do terceiro, cinco eventos ao acaso. Após duas semanas, os jovens do primeiro grupo declararam se sentir mais otimistas e satisfeitos com os outros e também apresentaram menos distúrbios físicos, como dor de cabeça ou de estômago, em comparação aos outros universitários.
É PRECISO FALAR
Sentir é bom, mas comunicar o sentimento é melhor ainda. Emmons e McCullough também constataram que expressar a gratidão não constitui a simples comunicação de um sentimento, mas tem o efeito de aumentar o bem-estar da pessoa que passa pela experiência. Os pesquisadores verificaram que mais da metade dos voluntários entrevistados declarava que o simples fato de agradecer sinceramente a alguém os deixava “extremamente felizes”. Outro trabalho realizado com adultos que sofriam de doenças crônicas mostrou resultados semelhantes: aumento das emoções positivas – alegria, entusiasmo, incremento da autoestima – nos dias em que haviam expressado senti- mentos de reconhecimento.
A orientação para a gratidão é um dos traços pessoais mais ligados ao bem-estar psicológico, e diversos fenômenos podem explicar sua ligação com a saúde física e mental. Examinemos, por exemplo, seu impacto sobre o modo pelo qual retemos as informações. As pessoas com alto nível dessa característica costumam memorizar mais facilmente as lembranças prazerosas positivas, o que torna os aspectos da vida mais agradáveis. A sensação de reconhecimento aumenta a intensidade com a qual uma pessoa pensa em um favor recebido, em quem o prestou e no contexto relativo à situação: todos esses elementos contribuem para reforçar aquela lembrança.
Quando se pede a indivíduos com um alto nível de orientação para a gratidão que se recordem de eventos do passado, eles apresentam maior número de lembranças boas, enquanto pacientes deprimidos demonstram tendência às evocações negativas. Assim, dado que a orientação para a gratidão permite se concentrar nos fatos positivos, é possível pensar que essa tendência reduz o risco de depressão.
Sentir-se intimamente grato – por tudo a que temos acesso e mesmo pelas atitudes que nos beneficiam até sem que haja essa intenção específica – também favorece as interações sociais, o que pode ser um importante fator de bem-estar. Perceber as emoções positivas alheias direcionadas a nós aumenta a autoestima: sentimo-nos considerados, amados, valorizados e apoiados. Além do mais, ao nos voltarmos principalmente aos outros, nos “esquecemos” de nós mesmos – enquanto os deprimidos se curvam sobre si mesmos, alimentando sentimentos de solidão e tristeza, a gratidão encoraja a abertura emocional.
Essa disposição favorece comportamentos empáticos e aumenta a sensação de proximidade em relação ao outro, ainda que se trate de um desconhecido. Isso explica por que as pessoas empenhadas no autoconhecimento tendem a criar redes sociais duradouras e de qualidade: no âmbito das pesquisas realizadas sobre o reconhecimento, os indivíduos inclinados à gratidão se distinguem pelo maior sentido de proximidade com outras pessoas. E mais: os amigos de voluntários desses estudos declararam que sentiam os efeitos do “contágio psicológico” do bem-estar provocado pela convivência com os “gratos”, em comparação aos que eram próximos aos participantes do grupo de controle do experimento. Cientistas afirmam que o mecanismo que produz esses efeitos se auto alimenta: a boa vontade e a generosidade incrementam a capacidade de desenvolver relações satisfatórias, e estas, por sua vez, aumentam a sensação de bem-estar. Assim, uma espécie de espiral ajuda as pessoas que cultivam a gratidão a se manterem felizes de forma duradoura.
É POSSÍVEL APRENDER
Mas nem sempre é fácil manter esse círculo virtuoso. Estímulos e apelos para nos sentirmos menosprezados e cultivarmos a certeza de que temos menos do que merecemos – o que não raro deflagra ciúme e inveja – são frequentes. E muitas vezes o estado de descontentamento parece tão “natural” que o tomamos como uma verdade irrefutável – sem espaço para o agradecimento. Mas é possível reverter isso. Um bom começo é compreender como nos apropriamos de crenças (que se transformam em certezas) psiquicamente prejudiciais sem questioná-las.
Uma das possíveis explicações para o mal-estar difundido nos países ocidentais é o isolamento de muitos indivíduos, em parte devido às modificações na estrutura social. Muitas pessoas vivem sós, as relações são voláteis e as separações, frequentes. Assim, o bem-estar psicológico das pessoas inclinadas ao reconhecimento dependerá de sua iniciativa de fugir do isolamento, já que sabem da importância da solidariedade e do apoio dos outros. Outro fator que vincula gratidão a bem-estar social tem a ver com as estratégias usadas para enfrentar as adversidades. As pessoas mais inclinadas ao reconhecimento têm a capacidade de valorizar aspectos positivos e benefícios, mesmo das circunstâncias difíceis. Em 2003, a pesquisadora Barbara Fredrickson e seus colegas da Universidade de Michigan estudaram os efeitos dos atentados às Torres Gêmeas e descobriram que as pessoas com nível mais alto de orientação para a gratidão se adaptavam melhor às experiências chocantes do 11 de Setembro e apresentavam menos sintomas decorrentes do trauma. Além disso, a gratidão favorece a solução dos problemas.
Mas se a tendência à gratidão é um traço da personalidade, é possível desenvolver a atitude de reconhecimento? Alguns psicólogos elaboraram exercícios que permitem aumentar esse sentimento para melhorar o bem-estar físico e psicológico. Ainda que a gratidão possa ser considerada uma disposição subjetiva estável, é possível desenvolvê-la por meio da educação durante a infância, por exemplo. Entre as práticas utilizadas pelos pesquisadores que trabalham com psicologia positiva, o chamado “diário da gratidão” experimentado por Sonja Lyubomirsky é uma das mais adotadas. Registrar os eventos bons pode ser bastante útil, especialmente se o exercício for praticado à noite e a pessoa escrever detalhadamente a respeito de cada situação. Porém, não basta experimentar o sentimento de gratidão; é necessário comunicar esse estado mental aos outros. De fato, inúmeros estudos têm demonstrado que o ato de agradecer a alguém produz efeitos mais amplos em comparação à simples sensação de reconhecimento. Quando não é possível expressar abertamente a própria gratidão, pode surgir uma espécie de tensão interna que reduz a sensação de bem-estar.
O reconhecimento pode também ser manifestado por meio de uma “carta de gratidão”. Durante um experimento, foi pedido aos voluntários que redigissem um texto no qual cada um expressasse gratidão para com uma pessoa que havia se mostrado particularmente atenciosa ou gentil, mas não tinha ainda recebido nenhum agradecimento. Na sequência, a carta deveria ser entregue em mãos ao destinatário. Após uma semana, os participantes do experimento se sentiam mais felizes em comparação aos indivíduos do grupo de controle que não manifestaram os próprios sentimentos. Os efeitos positivos persistiam por cerca de um mês após o experimento, depois diminuíam progressivamente se o exercício não fosse repetido.
As cartas de gratidão são ainda mais úteis no caso de experiências dramáticas, como mostra o caso de um homem que, por ocasião do Natal, decidiu escrever uma carta de gratidão a seus pais, expressando em seu nome e do irmão o reconhecimento por todo o amor que haviam lhes dedicado e pelos sacrifícios feitos por eles. Porém, durante as festas, o irmão morreu em um acidente de carro. Mesmo assim o homem entregou a carta escrita antes da tragédia. Nos meses seguintes, refletir sobre o conteúdo daquele texto ajudou toda a família a superar progressivamente o luto.
MEMÓRIA COMO ALIADA
Pesquisadores enfatizam que para aumentar a sensação de bem-estar associada à gratidão é fundamental, além de expressar abertamente os sentimentos, desenvolver a capacidade de atenção. A ação voltada ao momento presente é uma condição essencial para a gratidão – afinal, é impossível reconhecer algo que nem mesmo havíamos percebido. Por isso, é importante recorrer à pró-memória visual por meio de fotografias, cartas e outros objetos que nos tragam lembranças e nos conectem emocionalmente com pessoas significativas. Além disso, é essencial cultivarmos “amigos de gratidão”. Muitos estudos têm demonstrado, por exemplo, que é mais fácil praticar regularmente uma atividade esportiva na companhia de um amigo. Ter companheiros que nos encorajem diante de situações que favoreçam o desenvolvimento de sentimentos saudáveis de reconhecimento em relação aos eventos positivos pode ser decisivo. Essa prática corresponde aos mecanismos do contágio emocional. Se, em um grupo, um amigo experimenta gratidão, pessoas próximas tendem a vivenciar algo muito similar. Além disso, ela aumenta a probabilidade de que um comportamento anunciado venha mesmo a acontecer: a orientação para a gratidão é favorecida quando as pessoas expressam publicamente seu empenho nessa prática. Obviamente, a gratidão pelo que temos de bom não nos exime da dor e da tristeza. A proposta não é negar o sofrimento, mas sim aprender a extrair de cada situação os elementos que permitem o desenvolvimento das próprias competências e o bem-estar psicológico.
UMA COLA DIFERENTE
Historicamente, a maioria das pesquisas tem sido centrada sobre a função social da gratidão não seu impacto sobre nossos cérebros.
Esse conjunto de pesquisas descobriu que – explicando de forma bem direta – expressar gratidão a alguém que o ajuda mantém a pessoa interessada em você e faz com que ela invista no relacionamento a longo prazo. E faz com que o tempo que ela gastou, seu esforço, e as dificuldades, pareçam ter valido a pena. Da mesma forma, não há nada como a ingratidão para azedar um relacionamento que do contrário, seria positivo. Não é difícil para a maioria de nós recordar um momento em que nos chocamos com quão ingrato e descuidado alguém foi em resposta a nossa generosidade. Sem algum tipo de reconhecimento, as pessoas deixam muito rapidamente de querer ajudá-lo. De fato, em estudos realizados por Adam Grant e Francesca Gino, mostraram que quando alguém não era agradecido pela colaboração recebida, a probabilidade dessa pessoa ajudar outros no futuro diminuía, em média, 50%. Ou seja: do ponto de vista evolutivo, a gratidão parece ter um efeito de “cola” que une quem recebe e quem faz a gentileza (não necessariamente material, a boa ação pode vir em forma de palavras gentis, da disposição de ensinar algo ou apenas de ouvir as mazelas alheias).
Uma pesquisa recente sugere que as pessoas costumam cometer um erro crucial quando expressam gratidão: elas se concentram em como elas se sentem: em quão felizes elas estão, quão benéfica foi a ajuda – em vez de focar no benfeitor. As pesquisadoras Sara Algoe, Laura Kurtz, e Nicole Hilaire, da Universidade da Carolina do Norte, distinguem duas formas de expressar a gratidão: elogiar outro, o que valida as ações de quem ajuda, e o benefício próprio, com o reconhecimento da vantagem de ter sido agraciado com algo. Em um dos estudos, casais voluntários foram observados ao demonstrar gratidão um ao parceiro por algo que o outro tinha feito recentemente para eles. Suas expressões foram classificadas pelo grau em que representavam um elogio ao outro ou eram focadas no benefício próprio.
Exemplos de suas expressões incluem o elogio ao outro (por exemplo, “Isso mostra como você é responsável” ou “Acho que você é realmente bom nisso) ou reconhecimento do próprio benefício (“Sua atitude me fez muito bem”). Finalmente, os chamados benfeitores classificaram o quão felizes e amorosos eles se sentiram em relação ao seu parceiro, e quão grato o outro (que expressara a gratidão) de fato se encontrava. Os pesquisadores descobriram que a gratidão na forma de elogio estava muito mais fortemente relacionada com a percepção de receptividade, emoção positiva, e carinho – do que aquela focada no reconhecimento do próprio benefício.
Ora, mas então não é tão importante perceber o bem que recebemos? Claro que sim!
Fundamental. Mas na hora de agradecer, vale a pena nos lembrarmos de que os seres humanos são, com frequência, egocêntricos. Temos a tendência a falar de nós mesmos, mesmo quando deveríamos pensar nos outros. Assim, quando recebemos ajuda e apoio, queremos contar sobre como isso nos fez sentir. Na realidade, assumimos que é isso o que a pessoa quer ouvir. Na maior parte das vezes, essa suposição está só parcialmente correta. Sim, é muito provável que a pessoa que o ajuda quer que você seja feliz, mas a motivação para ser útil, muitas vezes, está diretamente ligada ao próprio senso de autoestima. Somos generosos porque queremos ser boas pessoas, para viver de acordo com nossos objetivos e valores. E, temos de admitir, para sermos admirados.
EM QUATRO PASSOS
Embora direcionada ao outro, na prática a gratidão faz bem, comprovadamente, a quem a sente, já que além do bem-estar a curto e médio prazo ela favorece a capacidade de resiliência em situações difíceis de forma geral. Alguns psicólogos cognitivos elaboraram um programa em quatro etapas para incrementar esse sentimento de gratidão:
1.IDENTIFICAR “pensamentos ingratos”.
2.FORMULAR pensamentos de reconhecimento.
3.IMAGINAR que esses últimos substituem os anteriores em sua cabeça.
4.TRANSFORMAR o sentimento em ação, expressando o reconhecimento.
REBECCA SHANKLAND – é doutora em psicologia, professora do Laboratório Interuniversitário de Psicologia da Universidade Pierre Mendès France, Grenoble 2; escreveu La psychologie positive (Dinod, 2012).
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