MENSAGENS SUTIS
Por muito tempo a expressão corpo foi menosprezada pelos estudiosos. Hoje se sabe que um único aceno pode transmitir desejos e intenções.
Movimento, atitude e postura corporal sempre comunicam alguma mensagem O corpo se expressa quando estamos em pé ou sentados, se falamos ou simplesmente ouvimos. E poucas vezes mente
Diferentemente da fala, a linguagem involuntária do corpo não recorre à ironia nem à dissimulação. Transmite a verdade nua e crua por meio de sinais que revelam pistas e impressões sobre personalidade e desejos. Um movimento feminino comum, que pode pôr intenções à mostra, é jogar os cabelos para trás. Homens fazem esse gesto mais raramente. Na maioria das vezes ocorre de forma involuntária e justamente por isso é tão revelador, se a mulher sorri – e principalmente se inclina ligeiramente a cabeça – sinaliza interesse pelo interlocutor. Como mostrou o etologista Karl Grammer, do Instituto Ludwig Boltzmann de Etologia Urbana, na Áustria. caso se mantenha séria, as chances de o parceiro estabelecer um relacionamento amoroso com ela provavelmente não são boas.
Atualmente, muitos pesquisadores consideram que tais movimentos físicos, especialmente gestos, são mais que meros acessórios para a comunicação. Ainda assim, são pouco investigados. Desde os anos 90, graças a diversos trabalhos como o do psicolinguista americano David McNeill, da Universidade de Chicago, muitos estudos mostraram como o corpo influencia, enfatiza, atenua ou até mesmo revela decisivamente aquilo que alguém quer transmitir com palavras. Para o pesquisador, “os gestos são janelas do pensamento”
Segundo McNeill, gestualidade e fala compõem uma unidade inseparável e têm por base um processo cognitivo. Ele recorre a um exemplo do cotidiano para embasar sua hipótese: a maioria das pessoas tem muita dificuldade de se comunicar por longo tempo sem recorrer às mãos. Quando explicamos algo, a ação aparece, na maioria das vezes, acompanhando a linguagem verbalizada. É possível transmitir com gestos informações para as quais fracassa a linguagem sonora”, diz a pesquisadora gestual Cornélia Müller, da Universidade Livre de Berlim. Com as mãos descrevemos relações espaciais complexas percursos ou formas podemos desenhar no ar mapa inteiros ou esquematizar com gestos um passeio a um jardim zoológico, por exemplo, evocando tais mapas “À direita, mais atrás, estão os macacos, e à esquerda, à frente, as zebras” Quem não gesticula tira de si mesmo um importante canal de informação.
A relação inequívoca entre gesto e fala é corroborada por pesquisas acerca dos distúrbios da comunicação. A gestualidade que acompanha a linguagem verbal não é prejudicada apenas por lesões cerebrais que paralisam membros. Essa forma de comunicação pode ser comprometida nos casos de afasias (perda da capacidade de falar ou de compreender o que é dito). Portanto, a linguagem gestual é controlada por áreas cerebrais responsáveis também pela fala.
Sons e movimentos aparecem interligados não só quando se deseja transmitir uma mensagem, mas no momento de captar o que o outo tenta comunicar. Em 2004, os neurocientistas Spencer Kelly, Corinne Kravitz e Michael Hopkins, da Universidade Colgate, em Hamilton, Nova York, mostraram que gesto e palavra são interpretados simultaneamente pelo cérebro. Além disso, encontraram confirmações de que o ouvinte compreende imediatamente a linguagem do corpo do interlocutor, mesmo que nem sempre essa percepção seja consciente. Por muito tempo, porém, isso foi mostrado apenas indiretamente, quando participantes voluntários de estudos eram questionados sobre as informações apreendidas de uma manifestação gestual.
O grupo da Colgate examinou a contribuição semântica de gestos com a ajuda de potenciais relacionados a eventos (ERP), da sigla em inglês) – respostas eletrofisiológicas específicas a estímulos internos ou externos.
Esses sinais coordenam etapas de processamento neural em determinadas regiões do cérebro, o que pode ser visto no traçado eletroencefalográfico (EEG). Após aproximadamente 400 milésimos de segundo aparece a oscilação máxima negativa, a chamada N400. O fenômeno ocorre, por exemplo, quando ouvimos uma frase como “Ele passou meias no pão” – e tropeçamos na palavra “meia, um estímulo inadequado e inesperado no contexto.
Sinais contrários
No experimento, voluntários assistiram a um vídeo com situações típicas de conversa: um ator dizia uma palavra e indicava, ao mesmo tempo, qualidades de um objeto com um gesto. O movimento de mão podia se adequar semanticamente ao que era dito quando, por exemplo, a palavra “grande” era expressa e indicava a dimensão de uma vidraça. Em outra situação o gesto fornecia informações adicionais, que nem sempre pareciam combinar de imediato com o primeiro dado apresentado, para “grande” os dedos faziam movimento que significava “fino”. Outra cena contraditória ligava a palavra “grande” a um sinal correspondente a “pequeno”. Às vezes, o ator não gesticulava, usava apenas palavras para transmitir o conceito.
De cada situação resultam diferentes “respostas” no eletroencefalograma{EEG): nas contradições semânticas entre fala e gesto os pesquisadores constataram fortes estímulos negativos, ou se1j, um efeito N400. De onde o grupo concluiu que o significado do movimento é incluído na interpretação da palavra.
O resultado é apoiado pelo fato de que os ERPs em situação de controle não apontam negatividade comparável. No processamento precoce as curvas do traçado também se diferenciam se o movimento de mão combina com a palavra, e a complementa ou até mesmo se a contradiz. “Gestos não são simplesmente um aceno insignificante, seu conteúdo semântico contribui para o processamento de significados de palavras, diz Kelly.
É possível fazer algumas suposições a respeito da origem dessa estreita conexão entre gestual e fala. A base dessa ligação reside possivelmente nas origens da própria aquisição da linguagem verbal, já que primatas possuem um rico repertório de gestos. Filhotes de chimpanzés, por exemplo, se dirigem à mãe com um sinal típico, estendendo-lhe a mão aberta
Estudiosos acreditam que, no homem, o gesto pode ter precedido a fala. O pesquisador Uwe Jürgens, coordenador do departamento de neurobiologia no Centro Alemão de Primatas, em Gottingen, compartilha com alguns colegas a opinião de que o homem desenvolve primeiramente “gestos vocais, ou seja, sons pouco sofisticados, empregados de forma similar a movimentos de mão ou a caretas, como unidades significantes simples.
Um desenvolvimento comum da comunicação sonora e gestual pode ser observado nas crianças Entre 9 e 12 meses o bebê usa gestos. Por volta de 1 ano, estende a mão aberta com todos os dedos – como os chimpanzés quando pedem comida – em direção ao objeto desejado. Em torno do 11º mês as meninas – e um pouco mais tarde os meninos – iniciam um processo de amadurecimento neural por meio do qual são capazes de estender a mão não mais com todos os dedos, mas apenas um. O gesto de alcançar o objeto do desejo com as mãos estendidas passa a ser a expressão clara da intenção de se dirigir a outra pessoa – e não necessariamente de pedir água, alimento ou brinquedo.
Uma vez amadurecida essa capacidade, os gestos que acompanham as palavras oferecem aos pesquisadores a possibilidade de observar as pessoas enquanto pensam e falam. No estudo de Cornélia Müller, uma voluntária diz: “Nos ouriçamos bem em nossa relação”, formando uma bola com as duas mãos. Ela representou mentalmente algo esférico, referindo-se a uma forma similar a do ouriço – algo que a linguagem sonora não revela imediatamente.
Varrer o lixo
Como há muitas variações desses gestos acompanhantes da fala, David McNeill, em seu influente livro Hand and mind: what gestures reveal about thought (Mão e mente: o que gestos revelam sobre pensamentos), de 1992, distinguiu quatro tipos básicos de gestos: dícticos, icônicos, metafóricos e “beats”. É fácil reconhecer estes últimos movimentos ao observar políticos nas campanhas eleitorais. E, em geral, aparecem estreitamente ligados ao ritmo da fala; golpes de braço ou batidas de mão conferem uma estrutura temporal ao que é dito e enfatizam a “força combativa” do argumento, independentemente do conteúdo expressado.
Gestos dícticos acompanham palavras como “aqui”, “lá”, ou “isto”, e também “eu” e “você”. Por meio deles mostra-se algo concreto “este pãozinho”, ou abstrato (“nesse caso”) Quem diz “eu” frequentemente aponta a mão levemente aberta para o próprio peito. Quando faz o mesmo movimento – sem que a palavra “eu” seja pronunciada, supõe-se que a pessoa se refere a si mesma.
Gestos icônicos expressam representações figuradas, referência espacial ou acontecimento. Surgem, por exemplo, quando alguém conta, “Marina tirou a sujeira da sala – e, simultaneamente, gesticula como se movimentasse uma vassoura imaginária. O movimento pode oferecer informações complementares, representando mais detalhadamente como o lixo foi recolhido do chão – e até se foi varrido pela esquerda ou pela direita.
Já os metafóricos se parecem exteriormente com os icónicos (como o que acompanhou a palavra ouriçar no exemplo anterior), mas se referem a expressões abstratas. Quando se diz “outro tema…, muitas vezes um objeto invisível é delimitado com as mãos semiabertas. Nesses casos, a ideia se torna “palpável” à medida que a pessoa se refere espacialmente a ela. E se continua a dizer “primeiramente, vamos colocá-lo de lado”, o tema exposto é realmente “empurrado” para o lado com um movimento das mãos.
Tanto os gestos icónicos quanto os metafóricos podem apresentar significados convencionais. Pense na mão que limpa o suor imaginário da testa com a lateral do dedo indicador “Como foi cansativo” A maior parte das pessoas do nosso círculo cultural compreende a mímica. Tomando por base o cotidiano na cidade de Berlim o especialista em semiologia Roland Posner, coordenou a organização do léxico berlinense dos gestos. Ele procurou mostrar que é possível reconstruir como surgem os gestos. O pesquisador cita um exemplo, balançamos a mão como se estivéssemos nos queimando numa chapa do fogão, procurando resfriá-la com o ar, para transmitir a mensagem de que estamos lidando com um assunto delicado, que quase deu errado. Com isso utiliza-se metaforicamente um movimento que se origina do contexto cotidiano, a cozinha. O gestual convencional funciona sem palavras.
Assim como o colega David McNeill, Adam Kendom, que leciona na Universidade da Pensilvânia e na Universidade de Nápoles, já supunha no início dos anos 80 que gestos e palavras poderiam surgir das mesmas ideias. De acordo com Kendom, movimentos que acompanham a verbalização são apresentados poucos segundos antes ou no máximo ao mesmo tempo que uma palavra ou frase de referência é pronunciada – como bater com a ponta do dedo na testa para fazer alusão a uma ideia original.
Se o lixo é varrido ou um tema é deixado de lado, são oferecidas também ao mesmo tempo indicações verbais e visuais.
Mãos em movimento
Segundo a teoria formulada por McNeill, existe uma fonte mental única, responsável pela produção de fala e gesto. A mistura de símbolos pré-verbais e as representações imagéticas compõem o ponto de partida para que as ideias sejam expressas. Para o pesquisador, haveria uma espécie de “grão” do qual se desenvolvem palavras ou frases, por um lado, e movimentos significativos de mão, por outro
As famílias linguísticas se distinguem na forma como dividem determinados componentes semânticos, sonoros e gestuais. Nas línguas de origem latina como português e espanhol, o movimento indica a ação. Na frase “ele escala a montanha” o gesto geralmente mostra o ato de escalar. Nas línguas germânicas como alemão e inglês, as mãos são mais usadas para designar o substantivo – nesse caso, a palavra montanha.
As línguas se diferenciam nitidamente em relação à unidade de informação de fala e gesto, diz David McNeill. Sua orientanda Gale Stam, que pesquisa a assimilação de uma segunda língua utiliza essa observação para constatar se um espanhol que aprende inglês passa a pensar com base também no segundo idioma. Enquanto o aluno enfatiza com gesto a palavra inglesa climb (escalar) internamente ainda a traduz do espanhol para o inglês. Se o movimento aparece na preposição though (através), isso faz supor que a transição para o pensamento em inglês já se realizou. Ela provavelmente está em “montanha”.
O estreito entrelaçamento de língua, pensamento e gesto chamou a atenção de pesquisadores que por muito tempo se preocuparam com a produção apenas sonora da língua. Um modelo importante nessa área foi apresentado por Willem Levelt, do lnstituto Max Planck de Psicolinguística, em Nijmegen, Holanda. Segundo ele, o cérebro elabora a linguagem em três níveis. Num primeiro momento, o que será dito é organizado como informação puramente pré-linguística (conceito ainda em formulação). No passo seguinte, num desdobramento do processo, interno, que ocorre em frações de segundo, são encontradas palavras e forma das frases para designar o que se pretende expressar. Só na terceira fase é acionado o aparelho de articulação que produz, através dos pulmões e cordas vocais, a fala.
Rascunho e robôs
Jan-Peter de Ruiter, aluno de Levelt, estudou o modelo e encaixou nele o gestual. Ele supõe que no primeiro nível (conceitualizador) já surge uma etapa preliminar imagética para gestos, o cérebro “desenha” rascunhos de movimentos. No segundo passo o esboço torna-se um projeto de como gesticular, que no terceiro momento é repassado aos programas motores. Estes levam mãos e braços a agir.
Com tal modelo seria possível explicar por que os gestos muitas vezes se manifestam antes da fala correspondente. Para uma expressão como “o martelo usado para colocar o prego na parede” o movimento de mão poderia descrever primeiro a ferramenta ou o prego e depois a ação de pregar, ou os dois concomitantemente. Mas não existe uma expressão corporal para “martelo-para-colocar- prego-na-parede”.
De Ruiter pesquisou mais detalhadamente a suposta relação de fala e gesto por meio de ações indicativas (“isto aqui”). Ele anotou diálogos em que se contavam histórias e confirmou que certamente a fala se adapta ao gesto, mas também que o contrário ocorre. O pesquisador observou que um “percurso de gesto” muito longo – como quando alguém aponta para um ponto muito alto – provoca o adiamento da fala paralela correspondente a ele. A adequação no sentido contrário do gesto à fala, fica mais clara quando uma pessoa testada se engana e titubeia. Nesse caso, o movimento já preparado parece “esperar até que a fala flua novamente.
Quem realmente quer entender a comunicação falada precisa investigar como o corpo se expressa. Por isso os estudiosos de robótica se interessam pela expressão não-verbal, pois querem construir parceiros que pareçam verdadeiros para as pessoas. A ideia do léxico berlinense dos gestos surgiu quando técnicos em informática da Universidade Técnica de Berlim perguntaram a Roland Posner como as pessoas gesticulam – a fim de ensinar essa habilidade aos seres artificiais.
Nosso grupo de trabalho na Universidade de Bielefeld criou Max, um robô virtual que entende e produz gestos que acompanham palavras. Ele sabe olhar para uma pessoa que aponta para um objeto virtual e lhe diz: “Monte o componente ali atrás. Quem se comunica com Max pode fazê-lo de forma natural. E também aqui se vê como a linguagem do corpo é prática e óbvia. Com sua ajuda, evitam-se equívocos: quando digo “esquerda” a Max, para facilitar posso apontar para a direção à qual me refiro, partindo do meu ponto de vista. O robô entende de imediato a mensagem. Ou seja, funciona de modo tão multimodal quanto nós, ao interpretar ou produzir frases e gestos ao mesmo tempo. Isso simplifica a comunicação enormemente. De qualquer forma, ainda vai demorar para mandarmos Max paquerar no bistrô.
INKE WACHSMUTH – Professor de inteligência artificial da Universidade de Bielefeld.
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