ARREPENDIMENTO: O PESO DO PASSADO
Não nos arrependemos do mesmo jeito das coisas que fizemos e das que deixamos de fazer: os psicólogos mostram que as ações não realizadas deixam uma sensação mais amarga.
Quem consegue não se arrepender de nada na vida? A existência nos impõe inúmeras oportunidades de experimenta-lo: chances perdidas, julgamentos errados, atos impulsivos, inibições inexplicáveis… Um estudo sobre a expressão cotidiana das emoções mostrou que os sentimentos de arrependimento (“Se eu soubesse…”, “Eu não deveria…”!) vêm em segundo lugar nas conversas, depois, é claro, de tudo o que se relaciona ao amor e à afeição. Será p arrependimento um companheiro para toda a vida? Arrepender-se de que? Por quê? E até que ponto? Os arrependimentos servem para alguma coisa? Se sim, para quê? E, enfim, podemos ou devemos tentar escapar deles? Essas perguntas começam a encontrar respostas na psicologia científica.
Os dicionários de francês definem regret como “um estado de consciência penoso, ligado ao passado, pelo desaparecimento de momentos agradáveis”: lamentamos o fim da infância, das férias, de um amor. Em seu Tratado das paixões da alma, Descartes o descreveu como um pesar, uma “espécie de tristeza” daquilo que se passou bem. Esse tipo de sentimento, que se assemelha à nostalgia, pode às vezes, e paradoxalmente, causar certo prazer, pois é associado à evocação de momentos agradáveis. Victor Hugo, por exemplo, definia nostalgia e melancolia como a felicidade de ser triste”.
Outro uso regret, mais difundido, e mais similar ao termo “arrependimento”, em português, é ligado ao descontentamento ou à mágoa por ter feito – ou não – alguma coisa. Trata-se de uma sensação desagradável, associada a numerosas emoções negativas: ressentimento, culpa, auto censura etc. Não nos contentamos mais em somente evocar o que se foi, mas avaliamos nossa responsabilidade num comportamento passado que lamentamos e em suas consequências atuais. Nesse sentido, o arrependimento não é somente a dor do passado, mas também um sofrimento do presente.
Para a psicologia, esse sentimento associa-se a aspectos emocionais (tristeza, às vezes raiva, vergonha ou preocupação) e cognitivos (avaliações de que não agimos como deveríamos). O arrependimento é ligado tanto à ação quanto à ausência dela e se distingue do remorso, que é o arrependimento por ações que prejudicam alguém.
O QUE É ARREPENDIMENTO?
Imagine a seguinte situação, João ia viajar às 17h30, mas quis terminar um trabalho e decidiu pegar o voo das 19h30. O avião das 19h30 caiu. Sua triste sorte inspira ainda mais pesar em seus parentes e amigos por ele ter feito a mudança do que se tinha previsto desde o início viajar às 19h30(eles pensam, “Se não tivesse mudado de ideia ainda estaria, vivo”). Nesse caso, seria apenas uma fatalidade. Nossos arrependimentos são, assim, estreitamente ligados a nossos atos, quanto mais dependente da fatalidade ou de circunstâncias exteriores um acontecimento parece, menos nos arrependemos dele.
Outra situação avaliada ao longo de uma pesquisa de psicologia social, Paulo e Pedro têm ações nas empresas A e B. No ano passado, Paulo, que havia muito tempo investira em ações da A, teve vontade de mudar e investir tudo na B. Mas acabou não mudando e, por isso, perdeu R$ 2 mil, pois B rendeu muitos lucros, enquanto A aumentou prejuízos. Pedro tinha ações da B, e teve a péssima ideia de transferir tudo para A. Desse modo, ele também perdeu R$ 2 mil. Do ponto de vista estritamente financeiro, ambos tiveram a mesma desventura. Entretanto, quando questionadas sobre qual dos dois deveria sentir mais arrependimento, 92% das pessoas ouvidas estimaram que Pedro provavelmente tinha arrependimentos mais pungentes: sua má inspiração ditou lhe um comportamento nefasto. Teria sido melhor se nada tivesse leito.
Já o arrependimento de Paulo, vítima da própria inação, parece menos penoso às pessoas convidadas a se identificar com os personagens dessa história. A ação engendra mais arrependimento que a inação.
De maneira geral, diversos estudos indicam que nos arrependemos mais pelo que fizemos do que pelo que não fizemos, a curto prazo, nossos fracassos são mais dolorosos quando provêm de ações que não trouxeram os frutos esperados (como no caso de Pedro, que vendeu suas ações da empresa B no momento errado) que quando resultam de inações (como Paulo, que pensou em comprar ações B, mas não o fez). Além disso, os psicólogos evolucionistas supõem que a função do arrependimento é justamente nos permitir aprender com nossos fracassos e nos incitar a ser mais prudentes no futuro, sem que nos lancemos de novo em uma ação incerta.
AGIR OU NÃO AGIR?
Em sentido oposto, outros estudos avaliaram o motivo dos maiores arrependimentos das pessoas e constataram que os mais profundos provêm daquilo que elas não fizeram: “Eu deveria ter seguido meus estudos”, “Deveria ter falado mais com meu pai enquanto ele era vivo”.
Numa pesquisa realizada com 77 pessoas de diversos meios sociais, que foram questionadas sobre os principais pesares de sua vida, dos 213 listados, apenas dez referiam-se a acontecimentos alheios ao controle da pessoa (“ter sofrido paralisia infantil). Quanto aos que dependiam de uma decisão própria, 63 % tinham a ver com uma ação não realizada, contra 37% de atos realizados (por exemplo, más escolhas sentimentais, profissionais ou financeiras).
Como explicar essa aparente contradição? Pelo fato de o arrependimento evoluir com o passar do tempo, temos a tendência imediata de nos arrepender das coisas que fizemos (quando deram errado, claro). E, a longo prazo, tendemos a nos arrepender mais de inações, de intenções de ação não concretizadas.
Além disso, parece que o perfil emocional desses dois tipos de arrependimento é distinto: arrependimentos por ações, a curto prazo, são mais intensos que aqueles provocados por inação. No plano emociona, os primeiros são geralmente chamados de “quentes”, enquanto os últimos são os “melancólicos”. Um estudo com 79 voluntários, que avaliava a intensidade das emoções associadas ao maior arrependimento de cada um nessas duas categorias, mostrou claramente essa relação: arrependimentos por ação são mais associados a emoções imensas (cólera, vergonha, a culpa, frustração etc.), e arrependimentos por inação são mais ligados a emoções discretas (sentir-se melancólico, saudoso, desenganado etc.). No primeiro caso, lamentamos uma realidade e no segundo, uma virtualidade. Como e pôr que passamos da dor pelo que fizemos ao incômodo pelo que não fizemos. Muitas explicações são possíveis. Antes de tudo, diversos fenômenos atenuam o tormento dos arrependimentos ligados aos atos, estes, às vezes, são reparáveis (pôr exemplo, desculpar-se e reconciliar-se depois de uma briga). Além disso, um trabalho de compensação psicológica frequentemente ofusca as consequências negativas de nossos atos, notadamente impelindo-nos a nos concentrar nos aspectos positivos da situação e não nos lamentáveis (“Não me casei com uma pessoa legal, mas meus filhos são maravilhosos”). Para exprimir esse fato, os anglo-saxões têm um provérbio, Every cloud has a silver lining, ou seja, “Toda nuvem tem uma borda iluminada”.
Contrariamente, a inação é mais insidiosa, e alguns mecanismos tendem a amplificar a dor do arrependimento causada pôr ela. Assim, se as consequências de uma ação lamentável são identificáveis e limitadas, as de uma ação não realizada são infinitas. Podemos sem dificuldade imaginar múltiplas cenas decorrentes do que teria acontecido “se” tivéssemos sido mais obstinados, mais seguros, mais ambiciosos…E isso vai aumentando, pois com o tempo tendemos a superestimar nossa capacidade de agir favoravelmente, uma vez que as dificuldades ligadas a uma situação passada se distanciaram. Assim, como o contexto preciso foi esquecido, não conseguimos mais explicar a própria inação, que nos parece indesculpável: “Como não tomei a decisão que se impunha, não posso me perdoar”.
No caso dos arrependimentos por inação, o campo das possibilidades não realizadas cresce à medida que a vida passa. Desse modo, não espanta que o arrependimento pelo tempo que se esvai seja uma fonte importante de inspiração poética e literária. Grande parte da obra Em busca do tempo perdido é inspirada nesse tema, segundo seu autor, Marcel Proust, “só podemos nos arrepender daquilo de que nos lembramos”. Essa frase subentende a existência do recalque de muitas das lembranças desagradáveis.
PERFIL DE PERSONALIDADE
Enfim, o arrependimento por inação é mais memorável que o arrependimento por ação. Esse efeito é conhecido em psicologia social desde 1935 como efeito Zeigamik (do nome de seu descobridor) e recebeu numerosas confirmações experimentais. Numa pesquisa, voluntários foram questionados sobre quais eram seus três maiores arrependimentos por ação e os três maiores por inação Três semanas depois, os pesquisadores telefonaram para cada um deles para saber se eles se lembravam das respostas dadas. A maioria (64%) lembrava-se mais dos arrependimentos por inação.
O interesse das pesquisas sobre arrependimento não é somente teórico. Elas permitem compreender que esses sentimentos representam uma atividade mental importante e inevitável no ser humano, às vezes útil, mas cujos efeito podem ser prejudiciais para alguns.
Assim, as pessoas que sofrem de fobias graves, como as sociais (timidez patológica, que leva a evitar inúmeras situações) ou a agorafobia (medo excessivo de frequentar lugares públicos, o que limita a autonomia e o deslocamento), devem renunciar, devido a seu distúrbio, a muitas atividades. Elas sofrem de arrependimentos múltiplos que muitas vezes dão origem a um estado depressivo. Todavia, os sofrimentos ocasionados por arrependimentos não se relacionam apenas às pessoas com problemas psiquiátricos. Cada um está sujeito a tais sofrimentos em graus variáveis, mas certos traços de personalidade os favorecem. Diversos estudos expuseram os fatores que agravam ou aliviam os arrependimentos, assim como as atitudes que nos permitem enfrentá-los melhor.
Determinados perfis de personalidade parecem mais expostos aos riscos de um arrependimento excessivo que outros. Assim, as pessoas que têm o hábito de cultivar uma visão positiva da existência
Têm menos arrependimentos mesmo em relação a acontecimentos desfavoráveis. Numa experiência, contou-se aos voluntários a seguinte cena: “Enquanto você espera sua vez na fila do banco, aparece um assaltante que, durante a fuga, dá vários tiros e um deles atinge o seu braço. Você teve sorteou azar?”. Diferenças de opinião muito claras aparecem: alguns lamentam a má sorte (“Precisava acertar justo em mim?”’ “Se eu tivesse chegado dez minutos mais tarde não teria acontecido nada…”) e outros comemoram a sorte, sem pesar. (“Que sorte, eu poderia ter morrido!”) Pode-se tirar daí um conselho de muita lucidez: diante dos acontecimentos, é fundamental imaginar tudo que poderia ter acontecido, e não somente o que poderia ter sido melhor!
Outros trabalhos mostraram como pessoas perfeccionistas, que buscam sempre atingir o melhor resultado e fazer as melhores escolhas possíveis, são geralmente menos satisfeitas, pois estão mais expostas ao arrependimento, que aquelas que se contentam com uma “escolha aceitável”. Um segundo conselho, muito sábio: é importante aprender nos diversos domínios do cotidiano, a renunciar ao ideal e a apreciar resultados modestos. Essa atitude não é aceitação da mediocridade, mas a busca pelo equilíbrio e pela melhor relação entre custo e benefício no dia-a-dia.
Por fim, há outro campo de pesquisa, sabemos que para muitas pessoas que têm vontade de agir, mas frequentemente desistem com medo do fracasso, ou para aquelas que tendem a transferir tudo para o dia seguinte, o hábito de se sujeitar a situações desagradáveis, ou pior, de renunciar a agir, é fator de frustração e arrependimento. Esta atitude é problemática, já que, mais de uma vez, foi demonstrado que a falta de ação tende a prender a pessoa num círculo vicioso.
Assim, se você não reagir rápido o bastante ou se perdeu uma primeira oportunidade de agir e tirar proveito disso (por exemplo, a liquidação com 50% de desconto numa loja que você adora), quando se apresentar uma segunda ocasião, também favorável, embora menos que a primeira, há grande probabilidade de você renunciar novamente para não ter arrependimentos do tipo, “Deveria ter aproveitado a primeira chance”.
Uma vez que os arrependimentos ligados à inação parecem infinitos, e que a inação leva a mais inação, outra ponderação útil poderia ser, na dúvida, aja. Aliás esta terceira sugestão também não deve ser levada ao pé da letra. Ao contrário, deve ser adaptada e personalizada. Com efeito, para pessoas que agem com facilidade, os arrependimentos têm menor importância em um fracasso ligado à ação que em um insucesso ligado à inação. Com pessoas indecisas dá-se o contrário, o arrependimento por um fracasso ligado à ação é mais doloroso. Decididamente, parece difícil não se arrepender de nada. Além do mais, talvez isso nem seja desejável.
IMPOSSÍVEL NÃO SE ARREPENDER
Entre dezenas de pesquisas realizadas sobre “os maiores arrependimentos da vida”, a maioria constatou que é impossível não se arrepender de absolutamente nada pois cada escolha se faz em detrimento de outra. Escolher uma opção é, implicitamente, eliminar outra. Em vez de visar o domínio total das escolhas ideais (o que é impossível) ou evitá-las totalmente (o que é ineficaz), parece melhor aprender a lidar de maneira inteligente com os arrependimentos. Como todas as emoções, esses sentimentos têm papel importante na capacidade de adaptação ao meio e no equilíbrio psíquico. Eles nos ensinam a fazer um balanço de nossos atos e a tirar deles lições para o futuro. Para libertar se do medo do fracasso e do arrependimento antecipado, o mais eficiente não é renunciar à ação, mas aumentar a tolerância com as derrotas. E, sobretudo, aprender a enxergar os ensinamentos que elas trazem, para transformar as situações de arrependimento em oportunidades de aprendizado, como nos lembra o ditado, “Se perder, pelo menos não perca a lição”.
Tentemos contradizer La Bruyére, que, em seu Caracteres, constatou com certo pessimismo o mau uso que o ser humano faz de suas experiências, o arrependimento que sentem os homens por causa do mau emprego que deram ao tempo que viveram, nem sempre os leva a aproveitar melhor o tempo que lhes resta“.
CHRISTOPHE ANDRÉ é psiquiatra do Hospital Sainte-Anne e professor da Universidade Paris X.
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