O SANGUE DOS LOUCOS
Médicos como Jeans-Baptiste Denis adotaram, no século XVII, a sangria e a transfusão como tratamento para mania e melancolia.
Durante o século XV, praticamente quaisquer acidentes ou doenças, incluídas as das faculdades da alma, eram explicáveis como obra dos demônios. Mesmo segundo grandes médicos do período, a fisiologia galenista que adotavam permitia admitir causas imateriais a reger as funções vitais, principalmente as mentais. Esse pandemonismo foi invalidado, durante o século XVl, pelas obras ousadas de Cornélio Agrippa, Paracelso, Weyer e outros, que tiveram influência secular na psicopatologia. Eles atribuíam mania e melancolia a causas passionais ou orgânicas e não a fantásticas atuações diabólicas.
Essa visão mais científica da loucura, contudo, não trazia grandes mudanças na prática terapêutica do médico, ainda fundada na teoria dos fluidos corporais, da tradição galenista. Entre esses fluidos (humores ou pneumas) o mais importante sempre foi o sangue. Mais ainda, depois que, em 1628, Harvey demonstrou que ele circulava pelo corpo e que, portanto, fluía também para o cérebro. Na ânsia de encontrar uma via de ação sobre ele, a sede das faculdades mentais” alteradas, os médicos perceberam que podiam regular o afluxo de sangue ao cérebro, e que, se excessivo, causava a agitação maníaca. Assim, a sangria tornou-se tratamento eletivo da mania: a retirada abundante de sangue, produzia, regularmente, calma e docilidade.
Não tardou a busca da cura da melancolia também através da circulação sanguínea. Tratava-se de irrigar o cérebro com abundante sangue novo, mais vigoroso. Qual sangue? Eis o que escreveu S. Kornfeld, em 1902, “… Em 1667, … Jean-Baptiste) Denis fez a primeira transfusão em um homem de 34 anos, levado à doença mental por um amor infeliz. Denis obteve êxito já na primeira tentativa, na qual retirou 280 gramas de sangue de uma veia do braço e nela injetou outras 140gramas retiradas da artéria da perna de um bezerro. No dia seguinte, Denis retirou mais 60 gramas de sangue e injetou pelo menos 400 de sangue do bezerro.
No dia seguinte, a mente do paciente se clareou tanto que muito em breve ele curou-se completamente, o que foi confirmado por todos os professores da Escola de Cirurgia… Na Alemanha, Klein recomendava as transfusões de sangue, como fez Ettmuller na sua Cirurgia transfusória, em 1682, particularmente nos casos de melancolia. (Kornfeld, S. Geschte der Psychiatr, em Neuburger, M. e Pagel, J. Handbuch der Gesbachter der Mtdizin, Jena, 1902).
A lógica do tratamento era evidente: se a inquietação ou depressão melancólica resulta de um sangue debilitado ou degradado, por um amor infeliz”, um sangue novo, de um vigoroso bezerro (imune a dissabores amorosos) restauraria a normalidade. Se todos os professores da Escola de Cirurgia confirmaram a eficácia curativa do método é porque não havia doença alguma ou porque ignoravam totalmente a importância de fatores emocionais, tanto no surgimento como na remissão ou cura das doenças mentais. Em 1812, já depois do Traitér de Pinel, B. Rush ainda recomendaria que o tratamento da mania se iniciasse com “a retirada de 600 a 1200 ml de sangue, de uma só vez. Os efeitos desta primeira sangria copiosa são maravilhosos para acalmar pessoas loucas…”. Tal como pensariam os professores da “Escola de Cirurgia de Paris, em 1667.
ISAIAS PESSOTTI – escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina USP, em Ribeirão Preto. É autor de “Os nomes da Loucura” e “O século dos manicômios”.