DOENÇA DE HUNTINGTON : A DANÇA MORTAL
Conhecida desde a Idade Média, a doença de Huntington é causada por mutação genética. Manifesta-se principalmente em adultos e provoca dor, fraqueza, espasmos, perda de mobilidade e até problemas cognitivos.
A doença de Huntington é uma patologia genética rara: determinadas áreas cerebrais são destruídas progressivamente. Ela leva inevitavelmente à morte. Desde que eu a mutação genética causadora da doença foi descoberta em 1993, a situação se modificou dramaticamente para os grupos de risco: após a maioridade, qualquer um pode realizar o teste e saber anos ou décadas antes do surgimento dos primeiros sintomas se vai padecer da doença de Huntington no futuro. Pois esse teste genético fornece um resultado certeiro – todo portador da mutação será, cedo ou tarde, vítima da doença.
O teste de DNA é tão assertivo porque a doença é causada por um único fator genético: o gene da extremidade cromossomo número 4 é um pouco mais longo em pacientes com Huntington que em pessoas saudáveis. Tipicamente, nesse gene os componentes do DNA citosina, adenina e guanina se sucedem repetidamente. Esse bloco CAG representa o aminoácido glutamina. Quanto mais vezes a combinação CAG aparece no DNA, maior a quantidade de glutamina no produto genético: a proteína também chamada huntingtina. Em um gene saudável, o bloco CAG se repete de 10 a 30 vezes. Se, no entanto, ele aparece mais de 37 vezes, então as características da proteína huntingtina se modificam de forma decisiva: quanto maior o número de repetições do CAG no DNA, mais longa a cadeia de glutamina na proteína, mais cedo a doença de Huntington se manifestará e mais penoso será o seu desenvolvimento.
Como é essencialmente hereditária – a mutação transmitida por apenas um dos pais já causa a doença – os riscos para parentes consanguíneos podem ser calculados com exatidão: 50% para os filhos, 25% para a geração seguinte.
Antes de realizar o teste de DNA, os consultores em genética humana do Centro Huntington da Universidade de Ruhr, Alemanha, procuram organizar a distribuição da doença na árvore genealógica da família a partir dos dados daqueles que os procuram. “Nossa avó se jogou na frente de um trem. Não deve ter sido acidente, conta Martin que teve diagnóstico positivo, ao lado da irmã mais nova, Susanne. “E o pai de nossa avó, nosso bisavô, se tornou um pouco estranho com a idade.”
A mãe de Martin teve a doença, mas naquele tempo ainda não era possível confirmar o diagnóstico pela genética molecular.
Martin e a irmã tornaram finalmente coragem para realizar o teste a fim de tirar a dúvida e planejar melhor sua vida pessoal e profissional. Susanne também é portadora da mutação.
Seus outros irmãos ainda não se dispus eram a fazer nenhum exame preventivo – por uma boa razão: o resultado do teste transforma pessoas fisicamente saudáveis em futuros doentes. Um teste de DNA, portanto, deve ser feito apenas depois de muita reflexão, pois uma vez que se conhece da predisposição genética, não se pode mais esquecê-lo.
Martin já apresenta os primeiros sintomas, como espasmos nos braços e nas pernas. Susanne permanece até agora sem manifestação, mas ela se pergunta se já não surgiram indícios inocentes que ela mesma não tenha percebido. A doença costuma se manifestar tipicamente entre os 35 e 45 anos e pode se desenvolver de formas muito diferentes mesmo entre parentes próximos. Sendo assim, irmãos podem padecer de Huntington em diferentes idades. No caso do filho de Martin, ninguém queria ou conseguia acreditar – nem mesmo os pediatras que o acompanhavam – que o menino já pudesse manifestar os primeiros sinais da doença antes dos 1O anos.
As crises de dor, a fraqueza muscular e as inexplicáveis dificuldades de movimentação foram atribuídas a outras causas. Após seis anos da doença, o teste de DNA revelou doença de Huntington infantil causada por um gene huntingtina extremamente longo, com desenvolvimento atípico.
Mas por que a doença ataca cm fases tão diferentes da vida: Através de exames em pacientes, já conseguimos comprovar que, além da mutação do gene huntingtina, outros fatores hereditários também influenciam. Assim, existem no cérebro diversas variações das chamadas proteínas receptoras que produzem o transmissor glutamato assegurando, dessa forma, a emissão das informações entre as células nervosas. De acordo com a variante desses receptores, a doença se manifesta mais cedo ou mais tarde.
HISTÓRICO DA DOENÇA
Essa moléstia é conhecida há séculos. Na Alemanha da Idade Média, os “dançarinos exagerados” peregrinavam até a Veitskapelle (capela de São Vitus), em Ulm, na esperança de serem curados – dando assim o nome à doença: “Chorea Sancti Viti” ou “Dança de Veit”. Em 1872, o jovem neurologista americano George Huntington (1851-1916) descobriu que se tratava de uma doença hereditária. Junto com seu pai, ele acompanhou o destino de uma família afetada em Long lsland e conseguiu diferenciar claramente a doença da “Chorea Minor”, uma infecção por estreptococo de sintomas semelhantes. A tríade clínica descrita por Huntington – hereditariedade, tendência a distúrbios psíquicos e surgimento em idade adulta – ainda hoje é considerada típica da moléstia que recebeu o seu nome.
O sintoma que lhe dava o nome originalmente (do grego choreia, “dança”) refere-se aos movimentos “dançantes” exagerados dos membros como uma das suas características mais frequentes e marcantes. No início, os pacientes tentam disfarçar os pasmos abruptos como se fossem um sinal de embaraço, balanço de cabeça ou dar de ombros, ou procuram integrá-los a movimentos voluntários. Mas, pouco a pouco, a pessoa perde o controle da musculatura e faz caretas repentinas. Falar e engolir se tornam tarefas difíceis.
Em estágio avançado, as sequências de movimentos se tornam mais lentas e o tônus muscular elevado provoca a paralisia dos membros numa contração dolorosa. Os diversos sintomas, que vão muito além da ‘dança”, substituíram a denominação “Coréia Huntington”, por “doença de Huntington”.
Também são características graves distúrbios psíquicos, que antecedem em anos, às vezes em décadas, os sintomas motores. A própria doença pode provocar episódios de depressão – mas, antes, o stress dos pacientes causado pelo resultado positivo do teste eventualmente leva a variações de humor. Muitas vezes, os parentes percebem mudanças na pessoa afetada: eles passam a se comportar de forma paranoica, tiranizam os que estão à sua volta com ciúmes injustificados ou reagem com uma agressividade exagerada para situações insignificantes.
EFEITOS DELETÉRIOS
Eles falam durante dias e semanas sobre coisas irrelevantes, importunando a família e, não raramente, rompendo ligações sociais. A capacidade cognitiva dos pacientes se reduz, sua memória já não funciona bem e eles têm cada vez mais dificuldade de concentração. A doença se transforma por fim em grave demência com total desamparo. Os distúrbios psíquicos podem ter rapidamente efeitos catastróficos sobre a vida pessoal e profissional, sem descartar tentativas de suicídio – algumas vezes até com uma brutalidade fora do comum.
Em compensação, a patologia é bastante rara: na Europa estima-se que há 45 mil afetados e, na América do Norte, 30 mil. Na Alemanha, uma em cada 10 mil pessoas tem Huntington, mas há pelo menos 6 a 8 mil com a mutação genética, e a quantidade de portadores desconhecidos deve ser considerável: a estigmatização social e mesmo a onda de eutanásia que houve durante o período do nazismo têm como efeito o silencio de muitas famílias sobre doenças hereditárias – muitas vezes com consequências desastrosas para as gerações seguintes.
Apesar da raridade, a doença de Huntington (modelo para várias outras doenças degenerativas – inclusive para males mais frequentes e conhecidos como Parkinson ou Alzheimer. A doença causa a destruição de neurônios em uma pane do cérebro chamada núcleo estriado ou striatum, que produz o neurotransmissor GABA. A redução de liberação desse neurotransmissor determina os movimentos involuntários e a degeneração mental progressiva.
Desde a descoberta do gene huntingtina os cientistas já adquiriram conhecimentos exemplares a respeito dos mecanismos que levam à destruição das células nervosas. Como a proteína huntingtina é a única causadora da doença, ela é perfeita para o estudo dos processos causadores.
A huntingtina em si não é uma proteína má. Em animais vertebrados, ela é aparentemente essencial para o desenvolvimento embrionário, pois ratos knock-out, alterados geneticamente para ter o gene huntingtina silenciado, morrem já em estágio embrionário. Supõe-se, porém, que a proteína huntingtina de comprimento anormal se conecte a outras proteínas importantes para a sobrevivência da célula, prejudicando, assim o seu funcionamento.
São afetados por esse processo, por exemplo, os chamados elementos reguladores de transcrição – proteínas que asseguram a leitura ordenada da informação genética. Se a huntingtina, com a sua cadeia alongada de poli glutaminas, se liga a um desses reguladores de transcrição, a atividade genética da célula é sensivelmente prejudicada, a regulação da síntese de proteínas entra em colapso.
Certas proteínas que eliminam neurotransmissores, como o glutamato, se instalam nas sinapses. Se essas proteínas falham, devido a um defeito no processo de síntese, então sobra glutamato na sinapse que estimula constantemente a célula conectada, a qual é então prejudicada. Tal modelo de toxicidade fatal pôde ser comprovado em experiências com animais: as células nervosas de ratos morreram depois que foi injetada quinolina nos animais, substância que age como o glutamato. Os roedores apresentaram sintomas típicos da doença de Huntington.
Há cada vez mais indícios de que a huntingtina participa da comunicação entre as células nervosas. Pois uma proteína ligada à huntingtina chamada HIPI (Hunting-lnteracting Protein1) regula, junto com outras proteínas existentes na membrana celular, a distribuição assim como a reassunção dos transmissores celulares. Devido à sua longa cadeia de poli glutaminas, a proteína huntingtina anormal não consegue mais se conectar corretamente à HIPI – com consequências fatais: a HIP1, então desimpedida, cria com a proteína HIP-Pl (HI Protein lnteractor) um complexo que dá início a uma cascata de enzimas. Entre vários outros processos, esse complexo ativa as chamadas caspases que, por sua vez, dão início à morte celular programada, a apoptose. A cascata provocada leva, assim, as células nervosas ao “suicídio”.
Devido à longa cadeia de poli glutaminas, a huntingtina corrompida é copiada de forma errada. Quando isso ocorre, entram em ação certas enzimas chamadas chaperon, ou acompanhante em inglês) que tem como tarefa, assim como as “damas de companhia”, consertar ou eliminar proteínas com defeito. Para tanto, elas transportam as proteínas defeituosas para o núcleo da célula e as decompõem.
COMUNICAÇÃO FALHA
Realmente, podem ser encontrados corpúsculos incrustados nos núcleos de neurônios prejudicados com partículas da huntingtina modificada. Com o desenvolvimento da doença, a quantidade desses pedaços de proteínas aumenta e, por fim, elas podem ser encontradas até mesmo fora do núcleo celular. Ainda não se sabe se as próprias partículas são as causadoras da doença ou se esta seria uma tentativa desesperada, mas fracassada, das células de eliminar os fragmentos de proteína soltos.
Uma outra teoria parte do princípio de que a huntingtina defeituosa atrapalha a transferência de energia das células nervosas. Pois foi possível observar que diferentes membros da cadeia respiratória das mitocôndrias, espécie de “usina energética” da célula, não funcionam mais corretamente. A falta de energia causada por esse fenômeno acaba levando à morte da célula.
E o que se pode fazer contra essa destruição fatal? A resposta é desanimadora: pouco, pois as opções medicamentosas até agora se limitam a combater os sintomas. Portanto, os neurologistas utilizam os chamados neurolépitcos, como a tiaprida e a tetra benzina. Originalmente desenvolvidos para o tratamento de psicoses esquizofrênicas, um de seus efeitos colaterais indesejáveis é a redução da capacidade motora dos pacientes – efeito desejável no caso dos afetados pela doença de Huntington.
Os médicos procuram combater os distúrbios psíquicos de seus pacientes com antidepressivos, sedativos ou neurolépticos antipsicóticos. Contra a perda da capacidade intelectual ainda não existe nenhum remédio eficaz.
Enquanto isso, vários grupos de estudo do mundo todo tentam atacar o mal pela raiz: eles procuram substâncias que desacelerem ou mesmo interrompam a decadência dos neurônios. Um exemplo de tais substâncias neuroprotetoras são os chamados antagonistas de glutamato, os quais influenciam a liberação do glutamato. O Riluzol, por exemplo, já se mostrou eficaz no tratamento de uma outra doença grave e de desenvolvimento acelerado do sistema nervoso, a esclerose lateral amiotrófica. A substância está sendo testada clinicamente em 450 pacientes de Huntington em um es tudo que abrange toda a Europa.
DOCE ALÍVIO
A minociclina, um antibiótico que era usado originalmente contra acne, também traz esperanças. Ela inibe as caspases, enzimas que causam a morte das células nervosas. O grupo de trabalho de Robert Friedlander, da Escola Médica de Harvard, em Boston, conseguiu, em 2003, interromper assim o avanço dos sintomas de Huntington em ratos.
Outras substâncias, por sua vez, conseguem impedir a aglutinação da proteína huntingtina. A trehalose, açúcar existente em plantas desérticas, por exemplo, promete um doce alívio”, também em ratos, pesquisadores coordenados por Motomasa Tanaka, do Instituto Riken, em Wako, Japão, conseguiram com isso bloquear a aglutinação da proteína e o início da doença.
Médicos tentam também interferir na transferência defeituosa de energia das células através de substâncias como a coenzima Q e a creatina. A coenzima Q coleta radicais livres de oxigênio na forma de antioxidantes, enquanto a creatina, produzida no fígado e nos rins, funciona como depósito de energia nos músculos e no cérebro. Nesse caso, as experiências com animais também obtiveram sucesso, mas a comprovação de sua efetividade em seres humanos, bem mais cara e demorada, ainda não existe. E, por fim, ainda estão sendo testados medicamentos contra tumores como o fenilbutirato, que deve reabilitar a síntese de proteína, prejudicada pela huntingtina anormal.
Paralelamente a tais estudos farmacológicos, há experiências com terapia genética. Em 2005, cientistas coordenados por Scott Harper, da Universidade de Iowa, conseguiram impedir a leitura do gene huntingtina transmutado. Para tanto, os pesquisadores injetaram no cérebro de animais curtos trechos de RNA exatamente idênticos ao RNA que deveria ser produzido para a proteína huntingtina transformada e que, então, a bloqueavam. Os roedores passaram a produzir uma menor quantidade da proteína que provoca a doença – e a produção da huntingtina saudável não foi influenciada.
Pesquisadores depositam também esperanças nas células-tronco. No ano 2000, Anne-Catherin Bachoud Levi e seus colegas do Centro Hospitalar Universitário Henri Mondor, em Créteil, França, implantaram em pacientes com Huntington células-tronco neurônicas de fetos abortados na esperança de que substituíssem as células cerebrais destruídas. Três anos mais tarde, cientistas coordenados por Robert Hauser, da Universidade do Sul da Flórida, em Tampa, realizaram uma experiência semelhante. Alguns pacientes responderam bem ao tratamento, porém outros sofreram hemorragia cerebral e seus sintomas chegaram mesmo a piorar. Todos os pacientes tiveram de utilizar medicamentos para impedir a rejeição das novas células. E os efeitos de longo prazo do tratamento ainda não são conhecidos.
Portanto, para Martin ainda não existe uma substância que impeça a evolução impiedosa de sua doença. Porém, nunca foram abertas tantas novas possibilidades nas investigações sobre ela. Os cientistas e clínicos europeus se preparam para realizar grandes estudos e já participam do Euro Huntington’s Diseasc Network (Rede Europeia da Doença de Huntington) a fim de trocar informações e coordenar melhor grandes estudos. Várias pessoas do grupo de risco e afetadas pela doença estão dispostas a participar de tais estudos – sem elas, não seria possível alcançar o seu objetivo. Talvez Martin também consiga encontrar um caminho para lidar com sua doença de forma mais eficaz.
JÜRGEN ANDRICH e JÕRG T. EPPLEN – são médicos e pesquisadores do Centro Huntington (NRW) da Clínica Neurológica da Universidade de Ruhr, em Bochum, Alemanha.
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