NOSSO DEUS É UM DEUS MISSIONÁRIO
Todo o conceito de “missão” está desaprovado no mundo de hoje, e cresce a hostilidade em relação a ele. Evangelização, zelo missionário, tentativas de converter outras pessoas, tudo é rejeitado por ser considerado “incompatível com o espírito de tolerância”, “uma total violação à liberdade individual” e “uma forma extremamente desagradável de arrogância”. Até na igreja certos membros são completamente indiferentes à missão da igreja, enquanto que outros lhe opõem ativa resistência. “Como pode uma religião reivindicar o monopólio da verdade?”, perguntam. “Não existem muitos e variados caminhos para Deus? “Que direito temos nós de interferir na privacidade dos outros, ou de tentar impor a eles nossos pontos de vista? Cada um que cuide da sua própria vida e deixe que os outros cuidem da sua.”
Por detrás dessa retórica negativa escondem-se três grandes objeções à missão cristã: ela seria uma forma de intolerância, de arrogância e de violência. Como podemos responder a estas críticas?
A tolerância é talvez a mais valorizada das virtudes na cultura ocidental, hoje. Mas nem sempre as pessoas definem o que querem dizer com tolerância. Se nós estabelecermos uma distinção entre três diferentes tipos de tolerância, quem sabe isso ajude a esclarecer. A primeira poderia ser chamada de tolerância legal; ela procura garantir que os direitos religiosos de toda minoria (geralmente resumidos como a liberdade de “professar, praticar e propagar” a religião) sejam devidamente protegidos pela lei. Os cristãos deveriam ser os primeiros a lutar por isso. Outro tipo é a tolerância social, que estimula o respeito a todas as pessoas, quaisquer que sejam os seus pontos de vista, procura compreender e valorizar a postura destes e promove a boa vizinhança. Esta também é uma virtude que aos cristãos interessa cultivar; ela brota naturalmente do nosso reconhecimento de que todos os seres humanos são criaturas de Deus e portadores de sua imagem, e de que ele deseja que vivamos juntos, em harmonia. Mas, e a tolerância intelectual, que é o terceiro tipo? Cultivar uma mente tão aberta que seja capaz de abraçar qualquer opinião, por mais falsa ou danosa que seja, sem nunca rejeitar coisa alguma, isso não é virtude; é um vício que denota fraqueza de espírito e de moral. No final, acaba gerando uma confusão sem princípios entre verdade e erro, entre o bom e o mal. Os cristãos, que creem que o bem e a verdade foram revelados em Cristo, não podem aceitar isso. Nós estamos decididos a dar testemunho de Cristo, que é a encarnação dos dois. Foi essa convicção que levou William Temple, quando Arcebispo de Cantuária, a declinar de convites para associar-se ao Congresso Mundial de Religiões e a escrever: “Estou convicto de que o cristianismo é uma religião profundamente intolerante”.
Se missão não é, no mau sentido, intolerante, então seria ela arrogante? Acho que deveríamos começar admitindo que certas atitudes cristãs e métodos evangelísticos poderiam ser considerados, e com justiça, como “orgulhosos” e “paternalistas”. Nós precisamos ser sensíveis e arrepender-nos dessas falhas que os outros enxergam em nós, cristãos. Os evangelistas nunca deveriam ser imperialistas, nem ambicionar o crescimento de seu império pessoal ou o prestígio de sua igreja ou organização; sua ambição deveria ser o reino de Deus. O espírito de cruzada, a mentalidade triunfalista e o estilo jactancioso são todos inapropriados para um embaixador de Cristo. A humildade é a virtude cristã preeminente e deveria caracterizar todos os nossos pensamentos, palavras e ações.
O Relatório de Willowbank (O Evangelho e a Cultura), resultado de uma consulta internacional realizada em janeiro de 1978, inclui uma seção inteira intitulada “Procura-se: Mensageiros Humildes do Evangelho!”. Metade dela é “uma análise da humildade cristã numa situação missionária” e concentra-se na necessidade de humildade cultural. Certos missionários ocidentais cometeram o equívoco de confundir Cristo com cultura. Tornaram-se, então, “culpados de um imperialismo cultural, que tanto mina a cultura local desnecessariamente como procura impor uma cultura alienígena em seu lugar.” O Relatório continua:
Sabemos que nunca deveríamos condenar ou desprezar outra cultura, mas, ao invés disso, respeitá-la. Não advogamos nem a arrogância que impõe nossa cultura a outros, nem o sincretismo que mistura o evangelho com elementos culturais incompatíveis com ele, mas, antes, a humilde partilha das boas novas, tornada possível pelo respeito mútuo de uma amizade genuína.
Dada a necessidade de arrepender-se da sua arrogância, tanto pessoal quanto cultural, seria o próprio conceito de missão inerentemente arrogante? Segundo Kenneth Cragg, conceituado especialista cristão em assuntos do Islã, o que acontece é justamente o contrário:
A descrição de missão como egoísmo religioso pode ter certa validade em relação a algumas de suas deslealdades. Mas é justamente deixar de fazer missão que se constituiria em egoísmo extremamente condenável, pois iria atestar um direito de propriedade sobre algo que é grande demais para pertencer a uns poucos e inclusivo demais para ser arrogado somente para alguns… Crer em Cristo é reconhecê-lo como um Cristo universal. Uma vez que ele é requisito para todos, ele não é propriedade de ninguém. A missão cristã é simplesmente um ativo reconhecimento das dimensões do amor de Deus.
A terceira objeção à missão cristã é que ela seria uma violenta agressão às pessoas. Para algumas pessoas, a evangelização, além de uma agressão, é também uma intromissão, pois implica em invasão indesejada a um território privado. Uma vez mais, precisamos reconhecer que às vezes isto é verdade. Aliás, a Grande Comissão não nos dá nenhum direito de invadir o espaço pessoal dos outros ou de derrubar as barreiras com as quais as pessoas procuram se proteger. Eu, pessoalmente, gostaria que nós chegássemos a um acordo quanto a expurgar o nosso vocabulário evangelístico de toda metáfora violenta. O termo “cruzada”, por exemplo, lembra as expedições militares medievais para a Terra Santa; “campanha” lembra operações de exército; e até mesmo a palavra “missão” faz lembrar ataques em tempos de guerra, enquanto que falar em comunidades como “alvos” dá mais a ideia de projéteis e bombas do que do evangelho da paz. Como podemos evangelizar com integridade se não formos expressão da “mansidão e humildade” do Cristo que proclamamos?
Quando as pessoas falam em “proselitismo” em um tom depreciativo, em geral elas parecem ter em mente algum tipo de conversão à força. Portanto, deveria haver uma distinção muito clara entre “proselitismo” e o verdadeiro “evangelismo”. Com efeito, existe entre as igrejas uma larga medida de consenso no sentido de que “proselitismo” é sinônimo de “testemunho indigno”. Além do mais, a “indignidade” de um testemunho proselitista pode ter relação direta com as nossas motivações (preocupação com a nossa própria glória, ao invés de visarmos a glória de Cristo), nossos métodos (confiar em técnicas de pressão psicológica ou no oferecimento de benefícios sob a condição de conversão, em vez de confiar no poder do Espírito Santo) ou mesmo com a nossa mensagem (enfocar a pretensa falsidade e as falhas dos outros, ao invés de enfatizar a verdade e a perfeição de Jesus Cristo). Além disso, não há necessidade alguma de se recorrer a nenhum tipo de “testemunho indigno”. Afinal de contas, a verdade acabará prevalecendo. Como disse Paulo, “nada podemos contra a verdade, senão em favor da própria verdade”. Aqueles que usam pressões inadequadas estão, portanto, admitindo a sua própria fraqueza.
A verdadeira missão cristã, pois, é plenamente compatível com uma tolerância autêntica, uma humildade genuína e uma mansidão igual à de Cristo. Além disso, ela faz parte do Cristianismo histórico. Isto acontece, em parte, como vimos no último capítulo, porque o Cristianismo afirma tanto a finalidade de Cristo (ele não tem sucessores) como a sua unicidade (ele não tem semelhantes nem rivais). Sua unicidade dá a ele significância universal; ele deve tornar-se conhecido no mundo todo.
E tem mais. A missão cristã tem suas raízes na natureza do próprio Deus. A Bíblia o revela como um Deus missionário (Pai, Filho e Espírito Santo), que cria um povo missionário e que está trabalhando para uma consumação missionária. Se este capítulo fosse um sermão, eu teria que anunciar como texto a Bíblia inteira! Não seria possível selecionar um texto mais curto, se é que queremos estabelecer uma base bíblica adequada para a missão cristã. Eu proponho, portanto, que tracemos um rápido panorama da Bíblia, dividindo-a em suas cinco seções. Olharemos, em primeiro lugar, para o Antigo Testamento e para Deus o Pai, o Criador do mundo, o Deus da aliança de Israel; depois olharemos para os Evangelhos e para o nosso Senhor Jesus Cristo, o Salvador dos pecadores; terceiro, para Atos e para o Espírito Santo em ação nos apóstolos e através destes; em quarto lugar, examinaremos as Epístolas e as igrejas que elas registram, vivendo e testemunhando responsavelmente no mundo; e, quinto, para o Apocalipse e para o clímax da história, quando o povo redimido de Deus será congregado dentre todas as nações. Cada estágio sucessivo é uma nova revelação missionária.
O Deus do Antigo Testamento é um Deus missionário
A ideia de que o Antigo Testamento é um livro missionário e de que Deus é um Deus missionário é uma surpresa para muita gente. Afinal, sempre se pensa no Deus do Antigo Testamento como sendo exclusivamente o Deus de Israel. Todos recordam como Deus chamou Abraão e fez uma aliança com ele e seus descendentes; como ele renovou a sua aliança com Isaque e Jacó e, posteriormente, com as doze tribos que ele resgatara da escravidão no Egito e trouxera para o Monte Sinai, onde prometeu que seria o seu Deus e que faria deles o seu povo; como ele os estabeleceu na terra prometida e os abençoou com reis, sacerdotes e profetas, preparando-os para a vinda do Messias. E tudo isso é verdade. Só que é apenas uma parte da verdade. Afinal, o Antigo Testamento começa, não com Abraão, mas com Adão; não com a aliança, mas com a criação; não com a raça escolhida, mas com a raça humana. Ele declara enfaticamente que Javé, o Deus de Israel, não era um deusinho tribal de estimação como Camos, o Deus dos moabitas, ou Milcom, o deus dos amonitas, mas o criador dos céus e da terra, o Senhor das nações, o “Autor e Conservador de toda vida”. Esta é a perspectiva de todo o Antigo Testamento.
Além disso, o chamado de Abraão não contradisse esta visão de mundo; ele o estabeleceu. Javé dissera a Abraão que deixasse “a sua terra, a sua parentela e a casa do seu pai” e fosse para uma outra terra que ele lhe haveria de mostrar. Agora Deus lhe disse:
“De ti farei uma grande nação,
e te abençoarei, e te engrandecerei o nome.
Sê tu uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem,
e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas
todas as famílias da terra.”
Assim, Abraão deveria deixar a sua própria terra e esperar que lhe fosse mostrada uma outra; deixar o seu próprio povo e transformar-se em outro povo. Deus prometeu não somente abençoá-lo, mas também fazer dele uma bênção; não somente dar a ele uma posteridade, mas através desta abençoar “todas as famílias da terra”.
Não seria exagero dizer que Gênesis 12.1-4 é o texto mais unificador da Bíblia inteira, pois nele se encerra o propósito salvífico de Deus, ou seja, de abençoar o mundo inteiro através de Cristo, que seria semente de Abraão. O resto da Bíblia é um desdobramento disso e a história subsequente tem sido um cumprimento disso. Primeiro Deus preparou Israel para a vinda de Cristo; e depois, através da sua vinda, tem abençoado o mundo desde então. Nós mesmos não seríamos seguidores de Jesus, hoje, se não fosse por este texto: nós somos beneficiários da promessa de Deus feita a Abraão há cerca de quatro mil anos. “Se sois de Cristo”, escreveu Paulo, “também sois descendentes de Abraão, e herdeiros segundo a promessa.” Uma vez mais, se compartilhamos da sua fé, “Abraão é pai de todos nós”. Pois a promessa divina foi um anúncio prévio do evangelho feito a Abraão, a saber, que Deus “justificaria pela fé os gentios”.
O trágico no Antigo Testamento é que Israel vivia se esquecendo do escopo universal da promessa de Deus. Eles negligenciavam o fato de que Deus havia escolhido uma família a fim de abençoar todas as famílias. Passaram a preocupar-se consigo mesmos e com sua própria história. Chegaram ao ponto de perverter a verdade da eleição divina, interpretando-a erroneamente como favoritismo divino, o que os levou a se vangloriarem de seu status privilegiado e a pressuporem que eram imunes ao juízo de Deus.
Assim, os profetas tinham que viver tentando ampliar a visão deles, lembrando-os de que o propósito de Deus através dos descendentes de Abraão era abençoar as nações. Por exemplo, Deus iria fazer das nações a “herança” e a “possessão” do Messias; todas as nações iriam servi-lo; ele haveria de ser uma luz para as nações gentias; e, naquele dia, todas as nações e povos afluiriam para o templo do monte do Senhor.
O Cristo dos Evangelhos é um Cristo missionário
Em 1850, David Livingstone, o intrépido missionário pioneiro na África, escreveu à sua irmã Agnes:
O cumprimento de uma missão do Rei dos reis jamais deveria ser considerado um sacrifício, enquanto outros acham que é uma honra servir a um governo terreno… Eu sou missionário de coração e alma. Deus só teve um filho, e este foi missionário e médico. Eu sou uma pobre, pobre imitação dele… A seu serviço eu espero viver; e no seu serviço desejo morrer.
Alguns anos mais tarde, Robert Speer, secretário itinerante do Movimento Voluntário Estudantil dos Estados Unidos, escreveu em seu diário: “Se você quer seguir a Jesus Cristo, deve segui-lo até os confins da terra, pois é para lá que ele vai… Nós não podemos pensar em Deus sem imaginá-lo como um Deus missionário.”
É verdade que, segundo o registro de Mateus, duas vezes Jesus restringiu sua missão às “ovelhas perdidas de Israel”. Ele disse aos Doze que não evangelizassem áreas gentílicas ou samaritanas, mas que “de preferência” procurassem as “ovelhas perdidas da casa de Israel”. E, mais tarde, disse a uma mulher cananeia, que lhe implorara em favor de sua filha endemoninhada, que ele fora enviado somente às ovelhas perdidas de Israel. Isso nos deixa perturbados e até mesmo chocados, pelo menos até nos darmos conta de que esta foi uma limitação meramente temporária e histórica, relacionada apenas ao ministério terreno de Jesus. Ele acrescentou que, através de sua morte e ressurreição e pelo dom do Espírito, a salvação seria ofertada a todas as nações, a quem seus seguidores, conforme suas instruções posteriores, deveriam levar as boas novas.
Até mesmo o Evangelho de Mateus, que é o mais judaico de todos os quatro Evangelhos e que é o único a incluir as duas referências às ovelhas perdidas da casa de Israel, deixa muito claro este horizonte global. Ele começa com a genealogia de Jesus, que é traçada desde Abraão, decerto para indicar que a promessa finalmente irá se cumprir. A seguir, após o nascimento de Jesus, ele descreve a visita daqueles misteriosos magos, que eram provavelmente astrólogos zoroastrianos da Pérsia e que trouxeram os seus tesouros para o “rei dos judeus”, e os quais Mateus vê como precursores das multidões gentílicas que mais tarde haveriam de prestar homenagem a Jesus. Mateus registra também a memorável predição de Jesus de que “muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus”. E o Evangelho de Mateus termina com a mais completa versão que temos da assim chamada “Grande Comissão” ou “Comissão Universal”. A missão dos Doze durante o ministério público de Jesus pode ter sido restrita às “ovelhas perdidas de Israel”, mas a missão da igreja não tem essa limitação. Os seguidores de Jesus devem “ir e fazer discípulos de todas as nações”, recebendo-os pelo batismo na comunidade cristã e ensinando-os a obedecer todas as orientações do seu Mestre. Esta comissão às nações nunca foi rescindida; eia continua unindo o povo de Deus. Ela foi feita pelo Cristo ressurreto, que podia afirmar que “toda autoridade no céu e na terra” lhe havia sido dada. Há uma intenção muito clara quanto à relação entre essa “toda autoridade” que ele reivindicava e “todas as nações” a quem ele comissionou seus seguidores discipulá-las. A missão universal da igreja brota da autoridade universal de Jesus.
O Espírito Santo dos Atos é um Espírito missionário
Roland Allen, notável missionário anglicano que atuou no Norte da China de 1895 a 1903, tinha um profundo anseio de que a igreja resgatasse os três princípios de autoctonia (autogoverno, auto sustento e auto propagação) que caracterizaram a política missionária do apóstolo Paulo. Seus livros mais conhecidos são Métodos Missionários: Nossos ou de Paulo? {1912) e O Crescimento Espontâneo da Igreja (1927). Menos conhecido é o seu breve estudo do livro de Atos, O Pentecoste e o Mundo, cujo subtítulo é A Revelação do Espírito Santo nos Atos dos Apóstolos, em que ele escreve: “O livro dos Atos é essencialmente um livro missionário… Não se pode deixar de concluir que o Espírito que foi dado era… de fato um Espírito missionário.” Este, continua ele, é “o grande, fundamental e inequívoco ensinamento do livro… É na revelação do Espírito Santo como um Espírito missionário que o livro de Atos se revela único no Novo Testamento.”
Roland Allen tinha razão. O Espírito Santo é o ator principal em Atos. O livro começa com os cento e vinte discípulos esperando. No cenáculo, em sua última noite com os Doze, Jesus havia prometido a vinda do Espírito o descrevera o futuro ministério do Espírito, de convencer, ensinar e testemunhar. Durante os quarenta dias que se passaram entre a ressurreição e a ascensão, a repetida mensagem foi que o Espírito lhes daria “poder” para testemunhar e que eles deveriam esperar pela sua vinda.
O Pentecoste foi, pois, um evento missionário. Foi o cumprimento da promessa de Deus dada por intermédio do profeta Joel, de derramar o seu Espírito “sobre toda a carne”, independentemente de raça, sexo, idade ou classe social. E as línguas estranhas que os discípulos falaram (o que claramente parece que as “línguas” foram, pelo menos no Dia de Pentecoste) foram um dramático sinal da natureza internacional do reino do Messias que o Espírito Santo viera estabelecer.
O restante do livro de Atos é um desdobramento lógico desse começo. Nós assistimos, fascinados, o Espírito missionário criando um povo missionário e impulsionando-os a saírem em sua tarefa missionária. Eles começaram a testemunhar aos seus companheiros judeus em Jerusalém e ao redor desta, nos quartéis-generais judaicos. Então Filipe tomou a corajosa iniciativa de testificar aos samaritanos, que estavam a meio caminho entre os judeus e os gentios. A seguir veio a conversão do centurião Cornélio, um daqueles gentios “tementes a Deus”, que havia aceitado o monoteísmo e os padrões éticos dos judeus, mas continuara sendo gentio, vivendo à margem da sinagoga, mas sem aceitar a plena conversão. O Espírito Santo deu a evidência mais clara possível de que agora Cornélio era um membro com plenos direitos na igreja. Logo depois, alguns crentes anónimos aproveitaram a brecha e “falavam também aos gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor Jesus”. Seguiram-se as três viagens missionárias do apóstolo Paulo aos gentios, em que ele evangelizou as províncias da Galácia, Ásia, Macedónia e Acaia e nas quais o Espírito Santo tanto o impedia como o guiava. O livro termina com Paulo em Roma, a capital do mundo e a cidade dos seus sonhos, não como homem livre, mas como prisioneiro; mesmo assim, porém, um evangelista infatigável, anunciando Jesus e o reino a quem quer que o visite, “com toda a intrepidez, sem impedimento algum”. Por todo o livro de Atos Lucas deixa claro que o impulso missionário veio do Espírito Santo. É este o tema de Harry R. Boer em seu livro Pentecoste e Missões. O livro de Atos, escreve ele, é regido por uma motivação única, que o controla e domina totalmente. Esta motivação é a expansão da fé através do testemunho missionário no poder do Espírito… Incansavelmente, o Espírito Santo leva a igreja a testemunhar, e continuamente nascem igrejas a partir desse testemunho.
Uma outra importante conclusão de Harry Bóer é que o momento certo para esse impulso evangelístico proveio do Espírito Santo e não da Grande Comissão — que, aliás, não volta a ser mencionada depois de Atos 1. Ele escreve:
Nós precisamos deixar de pregar a Grande Comissão como uma ordem a ser obedecida. Devemos anunciá-la, isto sim, como uma lei que expressa a natureza da igreja e que governa a vida dela… O derramamento do Espírito é, por sua própria natureza, a efetivação da Grande Comissão na vida da igreja.
A igreja das Epístolas é uma igreja missionária
Muitas vezes os membros da igreja local são vistos (seja na imaginação, seja na realidade) sentados em círculo, olhando uns para os outros. Este quadro não está errado, uma vez que nós pertencemos uns aos outros e necessitamos do apoio uns dos outros. Na verdade, o Novo Testa mento está sempre nos exortando a amar-nos uns aos outros, a encorajar-nos, confortar-nos e exortar-nos mutuamente, a carregarmos as cargas uns dos outros. E essa reciprocidade da comunhão cristã só pode ser desfrutada e desenvolvida quando nós encaramos uns aos outros. Mas “reunir-se em círculo”, embora seja legítimo, é também perigoso. Afinal, sempre que nos voltamos para dentro, na direção uns dos outros, estamos voltando as costas para o mundo. A fim de desfrutar uma comunhão mútua, nós tivemos que nos desligar do mundo. Isto é permissível — mas só se for temporário. Nós nos separamos do mundo para adorar e comungar, a fim de retornarmos a ele fortalecidos para viver como testemunhas e servos de Cristo.
Agora, todas as vinte e uma Epístolas do Novo Testamento, mesmo as que se destinam a pessoas específicas, têm como propósito, em suas diferentes formas, edificar a igreja e garantir o seu crescimento, tanto em maturidade como em extensão. É verdade que as Epístolas tratam de questões domésticas da igreja: sua doutrina, seu culto, seu ministério, unidade e santidade. Mas elas também pressupõem, do começo ao fim, que a igreja vive no mundo e tem como responsabilidade alcançá-lo em compaixão, lá onde ele está.
Para começar, Paulo presume que as igrejas irão participar do seu próprio ministério apostólico através do seu apoio, seus dons e, acima de tudo, suas orações. Ele agradece a Deus pela “cooperação no evangelho” dos filipenses. Pede aos tessalonicenses que orem para que através dele “a palavra do Senhor se propague, e seja glorificada”; aos colossenses, “para que Deus nos abra porta à palavra”; e aos efésios, para que lhe seja dada, no abrir da sua boca, a palavra, bem como ousadia e intrepidez ao fazer conhecido o evangelho.
Os apóstolos pressupõem também que a própria igreja se envolva na divulgação da fé. Paulo chama-a de “coluna e baluarte da verdade”, o que sugere que ela deve elevar a verdade (assim como as colunas mantêm elevado um edifício) e conservá-la firme (agindo como o alicerce de uma estrutura). Pedro chama a igreja de “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus”, a fim de que os seus membros possam “proclamar as virtudes” ou “anunciar as grandezas” (NVI) do Salvador, que os chamou “das trevas para a sua maravilhosa luz”.
E cada igreja local deve expressar o caráter missionário de toda a igreja. Os filipenses, que viviam “no meio de uma geração pervertida e corrupta”, foram exortados a “resplandecer como luzeiros no mundo” e a “preservar a palavra da vida”, exibindo-a, tal como um vendedor faz com suas mercadorias ou como um garçom faz com os pratos em uma festa. Os tessalonicenses são descritos como tendo, não somente “recebido” a palavra do Senhor, mas também feito com que ela “repercutisse” nas regiões vizinhas.
Os membros da igreja devem envolver-se também individualmente no testemunho cristão. A exortação dos apóstolos é que eles tenham consciência de que os “de fora” os estão observando. Eis aqui um exemplo: “Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as oportunidades. A vossa palavra seja sempre temperada com sal, para saberdes como deveis responder a cada um.” É uma instrução muito prática. Nós devemos ser sensíveis em nosso relacionamento com os de fora, aproveitar toda oportunidade para testemunhar, combinar graça com sal (quem sabe salubridade ou até perspicácia) em nossa conversação e estar prontos para responder a questões que nos são colocadas. Este último ponto nos faz lembrar a orientação similar dada por Pedro: “Estando sempre preparados para responder a todo aquele que pedir razão da esperança que há em vós.”
Assim, a igreja das Epístolas é uma igreja missionária, quer se pense na igreja universal, na igreja local ou em cada membro da igreja. Como vimos no capítulo 15, a missão é uma parte essencial da identidade da igreja. Em palavras francas de Lesslie Newbigin, “a ordem para discipular todas as nações encontra-se no centro do mandato da igreja; e uma igreja que esquece isso, ou que o marginaliza, perde o direito de ser chamada de católica e apostólica.”
O clímax do Apocalipse é um clímax missionário
O apóstolo João, quando lhe foi dada a chance de dar uma espiadinha pela “porta aberta no céu”, viu uma grande multidão em pé diante do trono de Deus. Todos estavam vestidos com vestes brancas (o símbolo da justiça), seguravam palmas nas mãos (o símbolo da vitória) e juntavam-se a um poderoso coro de adoração, atribuindo a sua salvação a Deus e ao Cordeiro. João descreve também essa grande multidão como vindo “de todas as nações, tribos, povos e línguas”. Portanto, a missão da igreja não será em vão. Pelo contrário, resultará em um enorme ajuntamento de pessoas, uma multidão multirracial e multinacional, cujas diferentes línguas e culturas, ao invés de impedir, irão enriquecer sua incessante celebração da graça de Deus.
A multidão redimida será também incontável. Somente então a antiga promessa de Deus a Abraão se cumprirá totalmente. Para enfatizar que não haveria limites para o número de descendentes de Abraão, tanto física (os judeus) como espiritualmente (os crentes, quer judeus ou gentios), Deus prometeu que eles seriam mais numerosos do que o pó da terra, as estrelas do céu e a areia na praia do mar. Cada uma destas metáforas simboliza incontabilidade. “Farei a tua descendência como o pó da terra; de maneira que se alguém puder contar o pó da terra, então se contará também a tua descendência.” “Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes.” Com o conhecimento que nós temos acerca do universo, neste século XX, parece que as miríades de miríades de estrelas dos bilhões de galáxias realmente chegam a somar tanto quanto todos os grãos de areia e as partículas de pó do mundo todo. Mesmo que tenhamos que continuar sem saber como é que Deus vai conseguir fazer isso, entrementes nós podemos nos regozijar com o fato de que a obra missionária da igreja irá chegar a esse clímax, para honra e glória de Deus.
Nós acabamos de ver, a partir deste breve panorama da Escritura, que o Deus do Antigo Testamento é um Deus missionário (ele chamou uma família a fim de abençoar todas as famílias da terra); que o Cristo dos Evangelhos é um Cristo missionário (ele comissionou a igreja para ir e fazer discípulos de todas as nações); que o Espírito Santo dos Atos dos Apóstolos é um Espírito missionário (ele impulsionou a igreja a fim de testemunhar); que a igreja das Epístolas é uma igreja missionária (uma comunidade mundial com uma vocação mundial); e que o clímax do Apocalipse será um clímax missionário (uma incontável multidão internacional).
Portanto, a religião da Bíblia é uma religião missionária. A prova disso é esmagadora, irrefutável. A missão não pode ser considerada um lamentável desvio da tolerância religiosa, nem como um hobby de alguns excêntricos entusiastas. Pelo contrário, ela nasce no coração do próprio Deus e comunica-se do seu coração para o nosso coração. Missão é o alcance global do povo global de um Deus global.
Portanto, se a nossa atitude tem sido de resistência à dimensão missionária da vida da igreja, ignorando-a por considerá-la dispensável, ou dedicando-lhe, mesmo com certa relutância, algumas orações intercessórias e atirando-lhe umas moedinhas de consolo, ou se nos preocupamos apenas em atender aos interesses da nossa própria vidinha comunitária, então precisamos arrepender-nos, isto é, chegou a hora de mudar. Nós dizemos que temos fé em Deus? Ele é um Deus missionário. Dizemos que estamos comprometidos com Cristo? Ele é um Cristo missionário. Declaramos estar cheios do Espírito Santo? Ele é um Espírito missionário. Nós nos deleitamos em pertencer à igreja? Ela é uma sociedade missionária. Esperamos ir para o céu quando morrermos? Ele está cheio de frutos da obra missionária. É impossível ignorar estas coisas.
Se dentre nós alguns necessitam de arrependimento, todos nós devemos entrar em ação. O verdadeiro cristianismo da Bíblia não é uma religiãozinha escapista, egoísta, quentinha, aconchegante e segura. Pelo contrário, ela mexe profundamente com a nossa segurança e garantia. Ela é uma força explosiva e centrífuga, que nos arranca do nosso estreito egocentrismo e nos atira para o mundo de Deus, a fim de testemunhar e servir. Precisamos, pois, encontrar maneiras práticas, seja individualmente, seja através de nossas igrejas locais, para expressar esse comprometimento.
Em 1885, o General William Booth, “com os olhos brilhando, desafiou uma multidão de salvacionistas de Londres: ‘Quanto mede o perímetro do mundo?’ Das cerradas fileiras veio a resposta, a toda voz: ‘Vinte e cinco mil milhas.’ ‘Então’, vociferou Booth, escancarando os braços, ‘nós precisamos crescer até que nossos braços se fechem num círculo em volta dele!’.”
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