DIMENSÕES DA RENOVAÇÃO DA IGREJA
O vigésimo século da igreja caracterizou-se por toda uma série de movimentos de renovação, cada qual enfocando um aspecto particular da vida eclesiástica. Pelo menos seis deles poderiam ser mencionados.
Primeiro, no começo do século, o movimento missionário recebeu um novo ímpeto através da Conferência Missionária Mundial de Edimburgo, em 1910. Posteriormente, o movimento de “crescimento da igreja”, fundado por Donald McGavran, e o Movimento de Lausanne, com seus congressos de evangelização mundial (Lausanne 1974 e Manila 1989), deram a ele um novo e considerável impulso.
Segundo, veio o movimento da teologia bíblica, cujo antecedente foi a ênfase lançada por Karl Barth e Emil Brunner entre as guerras, acerca da “alteridade” de Deus e sua Palavra. Este movimento floresceu entre 1945 e 1960, alimentado por estudiosos bíblicos como Gerhard von Rad (Antigo Testamento) e Oscar Cullmann (Novo Testamento), que enfatizavam a unidade interna da Escritura.
Em terceiro lugar temos o movimento ecumênico, que, embora tenha suas origens na Conferência de Edimburgo de 1910, ganhou forma com o surgimento do Concílio Mundial de Igrejas em Amsterdam, em 1948, e cuja ênfase tem sido a necessidade de unir as igrejas em seu testemunho para o mundo.
Em quarto lugar, o movimento litúrgico da pós-guerra, especialmente (se bem que não exclusivamente) na Igreja Católica Romana, objetivando modernizar a celebração eucarística da congregação. O Concílio Vaticano II deu-lhe um maior impulso.
Quinto, o movimento carismático, ou neopentecostal, que tem procurado integrar no contexto das denominações históricas as diferentes ênfases das igrejas pentecostais, na preocupação de resgatar o poder espiritual e os dons espirituais do corpo de Cristo.
E, sexto, o movimento da justiça social, que vai desde as diversas teologias da libertação até a redescoberta da consciência social evangélica, na tentativa de equilibrar as preocupações eternais e extramundanas da igreja com as suas responsabilidades mundanas e temporais.
Vemos, assim, que missão, teologia, unidade, celebração, poder e justiça são seis preocupações legítimas do cristão, tendo cada uma delas reunido em torno de si uma devotada clientela de protagonistas. Os resultados, no entanto, têm sido uma agenda fragmentada e insalubre. O que parece fazer-se necessário é uma visão holística ou integrada de renovação em todas as dimensões da vida da igreja.
A palavra católica romana para definir isso, pelo menos a partir do Vaticano II (1963-1965), é aggiornamento, ou seja, o processo de atualizar a igreja a fim de ir ao encontro dos desafios do mundo moderno. A implicação disso é que o mundo está mudando com muita rapidez e que, se a igreja quiser sobreviver, ela precisa acompanhar o ritmo de tal mudança, mas sem comprometer os seus padrões nem conformar-se com os padrões do mundo.
Os protestantes usam um vocabulário diferente para descrever essa constante necessidade de restauração e renovação da igreja. Nossas duas palavras favoritas são “reforma”, alusiva ao tipo de reforma de fé e vida baseada na Escritura e que ocorreu no século XVI, e “reavivamento”, denotando uma visitação completamente sobrenatural da igreja ou comunidade por parte de Deus, trazendo convicção, arrependimento, confissão, a conversão dos pecadores e a regeneração dos apóstatas. “Reforma” geralmente enfatiza o poder da Palavra de Deus, e “reavivamento”, o poder do Espírito de Deus, em sua obra de restauração da igreja. Quem sabe deveríamos guardar a palavra “renovação” para descrever um movimento que combinasse reavivamento pelo Espírito de Deus com reforma através de sua Palavra. Já que a Palavra é a espada do Espírito, alguma coisa tem que estar errada quando se enfatiza um em detrimento do outro.
Para melhor entendermos essa constante renovação, nada melhor do que refletirmos sobre a oração de Jesus pelo seu povo, registrada em João 17. É um equívoco considerar este capítulo como um texto exclusivamente ecumênico e cujo enfoque está na unidade cristã. A unidade, com efeito, está incluída; mas a preocupação que Jesus expressa em sua oração é consideravelmente mais ampla do que isso.
João 17 é, sem dúvida alguma, um dos capítulos mais profundos da Bíblia. Já se escreveram livros inteiros no objetivo de expô-lo. Por exemplo, Thomas Manton, puritano britânico do século XVII e que foi capelão de Oliver Cromwell durante algum tempo, pregou uma série de quarenta e cinco sermões baseados em João 17. Depois, o religioso irlandês Marcus Rainsford, que ocupou o púlpito da Igreja de São João, Belgrave Square, em Londres, de 1866 a 1897, pregou uma série de quarenta e um sermões baseados no mesmo capítulo. Ambas as séries foram publicadas, e cada um dos livros abrange mais de 450 páginas. Portanto, o que se poderia aprender em um breve capítulo? Existem aqui profundezas que jamais seremos capazes de atingir; o máximo que podemos fazer é pedalar pela superfície. Há aqui altitudes que nunca conseguiremos galgar; o máximo que podemos é escalar a encosta da montanha.
Contudo, convém perseverarmos. Afinal de contas, se o discurso do cenáculo (João 13 a 17) é o templo da Escritura, João 17 é o seu santuário íntimo, o santo dos santos. Aqui nós somos introduzidos à presença, à mente e ao coração de Deus. É-nos permitido espreitar um momento de comunhão entre o Filho e o Pai. Precisamos tirar as sandálias dos pés, pois estamos pisando em terra santa.
Primeiro Jesus ora por si mesmo (vs. l a 5), ao aproximar-se da cruz; segundo, ele ora por seus apóstolos (vs. 6-19), a quem ele havia revelado o Pai e que estão reunidos ao seu redor enquanto ele ora; e, terceiro, ora por toda a igreja, presente e futura (vs. 20-26), constituída de todos aqueles que hão de crer nele através do ensino dos apóstolos. Nós concentraremos na segunda e na terceira seções (vs. 6-26).
Na verdade Jesus não começa sua oração por seu povo até o final do versículo 11. Antes disso, por cinco versículos e meio (6-1la), ele descreve as pessoas por quem vai orar. É uma descrição um tanto elaborada e, embora se refira primordialmente aos apóstolos, ele os delineia mais como discípulos comuns do que em seu ministério apostólico distintivo. A descrição consiste de três partes.
Primeiro, eles pertencem a Deus. Três vezes Jesus repete a verdade de que o Pai os “deu” a ele, tirando-os do mundo (vs. 6-9); portanto, eles lhe pertencem.
Segundo, eles conhecem o Pai. Já que o Pai os deu ao Filho, o Filho deu a eles uma revelação do Pai. Isto também se repete. “Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo” (v. 6). E, mais adiante, “eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste e eles as receberam” (v. 8). Naturalmente, essa revelação do nome de Deus, essa dádiva das palavras de Deus, foi feita, em primeira instância, para os apóstolos; mas a partir deles ela tem sido transmitida a todos os discípulos de Cristo.
Em terceiro lugar, eles vivem no mundo. “Já não estou no mundo”, diz Jesus, “mas eles continuam no mundo, ao passo que eu vou para junto de ti” (v. l1a). Embora eles tenham sido dados “do mundo”(v. 6) para Cristo, eles contudo continuam “no mundo” (v. l1a) de onde foram tirados. Eles precisam ser espiritualmente distintos, mas não socialmente segregados. Jesus os deixa aqui como seus representantes ou embaixadores.
Eis aqui, portanto, a tripla caracterização de Jesus para o seu povo, a começar pelos seus apóstolos, mas incluindo também todos os seus discípulos que viriam depois, até chegar a nós mesmos. Primeiro, o Pai nos deu ao seu Filho. Segundo, o Filho nos revelou o Pai. Terceiro, nós vivemos no mundo. É esta tríplice orientação (para o Pai, para o Filho e para o mundo) que faz de nós o povo “santo”(ou seja, diferente) que nós somos. Nós vivemos no mundo como o povo que conhece a Deus e pertence a Cristo; portanto (está implícito), temos uma missão singular, que é fazê-lo conhecido.
E agora, o que é que Cristo pede para o seu povo, esse povo que ele acaba de descrever com tanto cuidado? O peso de sua intercessão consiste de apenas duas palavras, que só repetem. “Pai santo, guarda-os… peço… que os guardes do mal” (vs. 11b e 15). E uma oração para que o santo Pai nos conserve santos assim como somos, que ele nos proteja e nos preserve de toda e qualquer influência que possa perverter a posição inigualável que nos foi concedida. É uma oração para que sejamos guardados fiéis àquilo que nós somos, à essência da nossa identidade cristã, como povo que conhece a Deus, pertence a Cristo e vive no mundo.
Mais especificamente, Jesus ora para que o seu povo tenha quatro características, a saber: verdade, santidade, missão e unidade.
VERDADE (versículos 11 a 13)
Uma tradução literal do versículo 11b seria “Guarda-os em teu nome”, mas os comentadores não chegaram a um acordo quanto à tradução da preposição “em”. Uma possível tradução seria: “Protege-os pelo poder de teu nome”. Mas o contexto parece requerer que o nome de Deus não é tanto o poder pelo qual, como a esfera na qual os discípulos devem ser guardados. Portanto, acho que a tradução mais correta seria: “Guarda aqueles que tu me deste para que sejam fiéis a teu nome.” É como se a revelação do nome de Deus fosse o “muro de proteção dentro do qual eles deveriam ser guardados.” Afinal de contas, o nome de Deus é o próprio Deus, quem ele é, seu ser e seu caráter. Isto o Pai revelou ao Filho, e este, por sua vez, revelou-o aos apóstolos (v. 6). Durante o seu ministério aqui na terra Jesus guardou os discípulos nesse nome (v. 12, literalmente). Agora, no entanto, ele está para deixar o mundo. Portanto, ele ora para que o Pai os mantenha leais ao nome que ele lhes revelou, “para que eles sejam um, assim como nós” (final do v. 11). Isto é, o principal meio para conservá-los unidos é a sua lealdade à verdade revelada de Deus em e através de Cristo.
Verdade foi, pois, a primeira preocupação com a igreja expressa por Jesus em sua oração. Ele falou em revelação, no fato de ter revelado ou desvendado para eles o nome de Deus, que, de outra forma, permaneceria oculto. Deixou bem claro o seu anseio de que o seu povo fosse fiel a essa revelação e de que a unidade deles fosse baseada na sua fidelidade comum a ela. Hoje, porém, ao invés disso, temo que certos líderes de nossas igrejas possam ser seriamente culpados de infidelidade. Alguns deles têm a coragem de negar, tanto os fundamentos da fé cristã histórica como as bases da moralidade cristã tradicional, enquanto que outros parecem tão inseguros de si mesmos e de suas crenças quanto um jovem adolescente.
A igreja nunca poderá ser completamente renovada, a não ser que ela estiver renovada em sua fé, em seu compromisso com a verdade revelada de Deus em Jesus Cristo e no pleno testemunho bíblico de Jesus. Tampouco existe a mínima chance de a igreja resgatar a sua unidade, a não ser que ela resgate a única base autêntica para a unidade, que é a verdade. Jesus orou primeiro pela verdade da igreja; e nós deveríamos fazer o mesmo. Afinal, o propósito de Deus para a sua igreja é que ela seja “coluna e baluarte da verdade”.
SANTIDADE (versículos 14 a 16)
Em sua oração, Jesus pediu não somente que o Pai guardasse o seu povo fiel ao seu nome, mas também que o guardasse “do mal” (v. 15). Isto é, por um lado, ele desejava que eles fossem preservados do erro e mantidos na verdade; e, por outro lado, ele os queria guardados do mal e mantidos em santidade. O destino final da igreja, Paulo iria declarar mais tarde, é ser apresentada a Cristo “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito”. Mas a santidade da igreja tem de começar agora. Portanto, o que significa “santidade”?
No decorrer da história, a tendência da igreja sempre foi seguir os extremos, como já vimos no último capítulo. Às vezes, em sua determinação (aliás, muito apropriada) de ser santa, ela tem se afastado do mundo, perdendo o contato com ele. Outras vezes, em sua determinação (igualmente apropriada) de não perder o contato, tem se adaptado ao mundo, tornando-se virtualmente indistinguível deste. Mas a visão de Cristo para a santidade da igreja não é, nem afastamento, nem conformação.
Afastar-se era o que os fariseus faziam. Ansiosos por aplicar a lei aos detalhes da vida cotidiana, eles tinham uma falsa compreensão do que é santidade, achando que o mero contato com o mal e com pessoas más resultaria em contaminação. E na igreja tem perdurado um tipo de farisaísmo ou separatismo cristão, devido, geralmente, a um anseio apaixonado por santidade e a um zelo pela cultura cristã, no esforço de preservá-la do mundo ímpio. Foram estas as motivações que levaram os eremitas a fugir para o deserto no século IV, resultando no desenvolvimento do monasticismo medieval. Mas, por mais nobres que fossem os motivos dos monges e dos eremitas, essa espécie de monasticismo que exige isolar-se do mundo é uma traição a Cristo. O mesmo acontece com essa piedade moderna que tenta enclausurar os cristãos em uma mentalidade de gueto, cortando-os efetivamente do contato com os não-cristãos. Afinal, a oração de Jesus foi bem específica: embora quisesse que os discípulos fossem protegidos do mal, ele não queria que eles fossem tirados do mundo (v. 15).
Se a atitude dos fariseus era o “afastamento” — e mais ainda a dos essênios, que se refugiavam em suas comunidades no deserto para orar e esperar a chegada do reino de Deus —, a atitude dos saduceus era de “conformação”. Pertencentes a famílias ricas e aristocratas, eles colaboravam com os romanos e procuravam manter o status quo político. Essa tradição comprometedora também persistiu na igreja primitiva e ainda sobrevive hoje. Uma vez mais, a motivação para tanto podia até ser boa, ou seja, a resolução de destruir as barreiras entre a igreja e o mundo e de ser amigo de publicanos e pecadores, assim como Jesus. Só que ele se mantinha também “separado dos pecadores” em seus padrões e valores.
Em lugar destas duas posições extremas, Jesus nos chama a viver “no mundo”(v. 11) e, ao mesmo tempo, assim como ele, a “não ser do mundo”(v. 14), isto é, nem pertencendo a ele, nem imitando os seus caminhos. E a “santa mundanidade” da igreja, acerca da qual escrevi no capítulo anterior, em conexão com a dupla identidade da igreja. Nós não devemos, nem ceder, nem nos omitir. Pelo contrário, precisamos ficar no mundo e permanecer firmes, assim como uma rocha na correnteza da montanha, como uma rosa que desabrocha em pleno inverno e como um lírio que cresce no meio do estrume.
MISSÃO (versículos 17 a 19)
Há, na oração de Jesus, quinze referências a “o mundo”, o que indica que uma das suas maiores preocupações era como o seu povo haveria de se relacionar com o mundo, ou seja, à sociedade não-cristã ou ao secularismo sem Deus. Ele apontou para o fato de que eles lhe haviam sido dados “do mundo” (v. 6), mas que não deveriam ser tirados do mundo (v. 15); que eles ainda estavam vivendo no mundo (v. 11), mas não deviam ser do mundo (v. 14b); que seriam odiados pelo mundo (v. 14a), mas que, mesmo assim, eram enviados ao mundo (v. 18). Este é o relacionamento multifacético da igreja com o mundo: viver nele, não pertencendo a ele, odiada por ele e enviada a ele.
Quem sabe a melhor maneira de se compreender isto seja que, ao invés de “afastamento” e “conformação”, que são atitudes erradas em relação ao mundo, a atitude correta é a “missão”. Com efeito, a igreja só poderá fazer missão no mundo se ela evitar as duas trilhas falsas. Se nós nos retirarmos do mundo, a missão se fará obviamente impossível, já que perdemos contato com ele. Da mesma forma, se nos amoldarmos ao mundo, será impossível fazer missão, já que perdemos o nosso limite.
O mais impressionante é que, embora nós vivamos “no” mundo (v. 11), somos, no entanto, enviados “para” o mundo (v. 18). Mas é isso mesmo. É completamente possível haver cristãos que vivem no mundo sem que tenham a mínima participação na missão de Cristo.
A oração de Cristo por seu povo aqui é que o Pai nos “santifique” pela sua palavra da verdade (v. 17), ou melhor, que nós sejamos “verdadeiramente santificados”, assim como Cristo, que santificou-se a si mesmo por nós (v. 19). Mas que santificação é essa, poderíamos nos perguntar, se ela é uma santificação em que o próprio Cristo participou? Como é que se pode dizer que o Cristo sem pecado santificou-se a si mesmo? A resposta está certamente no fato de que a santificação tem dois aspectos complementares, um negativo e outro positivo. Ser santificado é ser separado do mal em todas as suas formas. É isto que nós costumamos pensar quando usamos a palavra “santificação”. Mas ser santificado é também ser separado para o ministério específico para o qual Deus nos chamou. É neste sentido que Jesus separou-se a si mesmo por nós, a saber, para vir ao mundo a fim de nos buscar e salvar. Nós também fomos “santificados”, ou separados para a nossa missão no mundo. De fato, nós podemos ser descritos como “separados do mundo para estar a serviço do mundo”.
No versículo 18 (assim como em João 20.21) Jesus traça deliberadamente um paralelo entre sua missão e a nossa: “Assim como tu me enviaste ao inundo, também eu os enviei ao mundo.” Em que sentido, pois, Jesus pretendia que sua missão fosse o modelo para a nossa? Existem, evidentemente, diferenças substanciais. O fato de ele ser enviado ao mundo requer tanto a encarnação quanto a expiação, embora nenhum de nós seja Deus para se “tornar carne” ou morrer pelos pecadores. Não obstante, o fato de sermos enviados ao mundo, assim como ele, haverá de moldar a nossa compreensão de missão. Ele nos diz que fazer missão implica entender-se sob a autoridade de Cristo (nós somos enviados, não nos voluntariamos); renunciar a privilégios, segurança, conforto e distância, à medida que mergulhamos no mundo de outras pessoas, assim como ele veio fazer parte do nosso mundo; humilhar-nos e tornar-nos servos, tal como ele fez; suportar a dor de sermos odiados pelo mundo hostil para o qual somos enviados (v. 14); e compartilhar as boas novas com as pessoas lá onde elas se encontram. No capítulo 21, “A Cristologia da Missão”, diremos mais acerca de Cristo como o nosso modelo de missão.
UNIDADE (versículos 20 a 26)
Agora os olhos proféticos de Jesus voltam-se para o futuro, rumo à era pós-apostólica. Ele visualiza as futuras gerações de discípulos, aqueles que não o verão em carne, assim como os apóstolos o conheceram, mas que haverão de crer nele através do ensino destes: “Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio de sua palavra” (v. 20). Isto significa todo cristão de todos os tempos e lugares, inclusive nós. É verdade que nós podemos chegar ao conhecimento de Jesus pelo testemunho de nossos pais, ou de um pastor, evangelista, professor ou amigo. Mesmo assim, o testemunho deles ainda será um testemunho secundário, uma confirmação daquilo que eles experimentaram a partir do testemunho original dos apóstolos. Estes é que foram as testemunhas oculares, especialmente escolhidos por Jesus para estar com ele, a fim de que pudessem dar testemunho daquilo que tinham visto e ouvido. Existe apenas um Cristo verdadeiro, o Cristo do testemunho apostólico (agora preservado no Novo Testamento), e todos os crentes, desde a era apostólica, vieram a crer em Jesus “por intermédio da sua mensagem”.
Mas, então, o que Jesus deseja para todos os crentes através do mundo e dos séculos? Quanto a isto não há dúvida, pois ele o expressa três vezes:
versículo 21a: “a fim de que todos sejam um” versículo 22b: “para que sejam um” versículo 23b: “a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade”
Estes pedidos são muito conhecidos. O que geralmente não se sabe ou compreende tão bem é a natureza da unidade pela qual Cristo orou e da qual ele enfatizou dois aspectos. Primeiro, ele orou que seu povo desfrutasse de unidade com os apóstolos. Analisemos cuidadosamente o que está registrado no versículo 20 e no início do 21: “Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um”. Nós já vimos que Jesus faz distinção entre dois grupos de pessoas, convenientemente designados como “estes” (o pequenino grupo dos apóstolos reunidos em torno dele) e “aqueles” (o enorme ajuntamento de todos os crentes subsequentes), ou os ensinadores e os ensinados. Então ele ora para que “todos” (o que provavelmente significa “estes” e “aqueles”, juntos) “sejam um”. Em outras palavras, a oração de Jesus foi, antes e acima de tudo, que houvesse uma continuidade histórica entre os apóstolos e a igreja pós-apostólica, que a fé da igreja não viesse a mudar com o passar dos anos, mas permanecesse reconhecível do mesmo jeito, e que a igreja, em cada geração, pudesse merecer o epíteto de “apostólica”, em virtude de sua lealdade à mensagem e missão dos apóstolos. A unidade cristã começa, pois, como sendo unidade com os apóstolos (por intermédio do Novo Testamento, que coloca à nossa disposição o ensino deles); sem isto, a unidade da igreja não seria distintivamente cristã.
Em segundo lugar, Jesus orou para que o seu povo desfrutasse de unidade com o Pai e o Filho. Embora haja certa discussão em torno à pontuação do versículo 21, a maioria das versões considera a segunda parte como o começo de uma nova sentença. Assim, a tradução deveria ser a seguinte: “e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, [eu oro que] também sejam eles em nós; para que o mundo creia…”. As implicações desta petição são surpreendentes, pois Jesus ora que a união de seu povo com Deus seja comparável à unidade do Pai e do Filho um com o outro na Trindade. E depois continua, no versículo 23: “Eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à perfeita unidade” (NVI).
Assim, pois, a unidade cristã pela qual Cristo orou não era, primariamente, uma unidade de uns com os outros, mas, sim, unidade com os apóstolos (uma verdade comum) e unidade com o Pai e com o Filho (uma vida comum). A unidade visível e estrutural da igreja é um objetivo legítimo. Mas ela só agradará a Deus se for a expressão visível de algo mais profundo, a saber, a unidade na verdade e na vida. Em nossa preocupação ecumênica, portanto, nada é mais importante do que a busca por uma verdade mais apostólica e uma vida mais divina através do Espírito Santo. Como disse William Temple, “o caminho para a união da cristandade não passa pelas salas dos comitês, embora haja ali uma tarefa de formulação a ser cumprida. Ele passa pela união pessoal com o Senhor, uma união tão profunda e real que possa ser comparável à sua união com o Pai”.
É este tipo de unidade (uma verdade e uma vida compartilhadas) que leva o mundo a crer em Jesus (v. 21 e 23). De fato, o principal motivo que leva Jesus a orar pela unidade de seu povo é “a fim de que” o mundo creia na origem divina de Jesus e da sua missão. Sua oração é que todos os que no futuro haverão de “crer” nele (v. 20) possam desfrutar uma unidade de verdade e uma vida tal que o mundo também possa “crer” nele. Assim, fé produz fé e os crentes se multiplicam. Nos versículos finais de sua oração (vs. 24-26), os olhos de Jesus passam a enxergar mais além da história e fitam a eternidade, pois somente no céu é que a unidade do seu povo atingirá a perfeição.
Eles verão a sua glória (v. 24), e o resultado final da revelação do Pai através do Filho será que eles irão experimentar o mesmo amor que o Pai tem pelo Filho e, além disso, o próprio Filho habitará neles (v. 26). Esta unidade suprema, que abrange o Pai, o Filho e a igreja em amor, encontra-se certamente além da nossa imaginação, mas não está além de nosso humilde e ardente desejo.
A oração de Jesus é, portanto, muito mais abrangente do que geralmente se imagina. É uma oração pela verdade (“guarda-os em teu nome”), a santidade (“guarda-os do mal”), a missão (“santifica-os… eu os enviei ao mundo”) e a unidade (“a fim de que sejam um”) da igreja.
Foi por ocasião da III Assembleia do Concílio Mundial de Igrejas em Nova Délhi (1961) que Michael Ramsey fez esta admirável afirmação: “O capítulo 17 do Evangelho de João descreve Jesus orando, não somente para que seus discípulos fossem um, mas também para que eles se tornassem santos e compreendessem a verdade. Unidade, santidade e verdade andam juntas.” E, ainda assim, ele omitiu o quarto tópico: missão!
Um dos problemas da igreja contemporânea é a sua tendência de pulverizar essa visão holística de Cristo e de escolher um ou dois de seus aspectos, omitindo o resto. Mas, como disse Michael Ramsey, também na assembleia de Nova Délhi, “um movimento que se concentra na unidade como um conceito isolado pode desencaminhar o mundo e desencaminhar a nós todos, tanto quanto o faria um movimento cujo rótulo exclusivo fosse a santidade ou então a verdade.”
A maior preocupação da igreja do século XX tem sido a busca pela unidade estrutural, mas isso, muito frequentemente, sem uma comparável busca pela verdade e a vida que constituem a verdadeira unidade e são o meio pelo qual ela cresce.
Outros se preocupam com a verdade (ortodoxia doutrinária), tornando-se muitas vezes, nesse processo, áridos, insensíveis e sem amor, esquecendo-se de que a verdade tem que ser adornada com a beleza da santidade.
A santidade, ou seja, a vida interior da igreja, parece ser de suma importância para outros. Mas às vezes essas pessoas se recolhem a uma piedade egocêntrica, esquecendo-se de que fomos chamados do mundo a fim de sermos enviados de volta para ele, que é no que consiste a “missão”.
Assim, a missão passa a ser a obsessão de um quarto grupo. Só que, às vezes, este se esquece de que o mundo só virá a crer em Jesus quando o seu povo for um em unidade, santidade e amor.
Verdade, santidade, missão e unidade estavam juntas na oração de Jesus e precisam ser mantidas juntas em nossa busca por renovação da igreja hoje. Acho que nós podemos detectá-las na igreja primitiva de Jerusalém, cheia do Espírito, já que em Atos 2.42 e 47 nos é dito que os cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos” (verdade), “e na comunhão” (unidade), “no partir do pão e nas orações” (culto como expressão de sua santidade), e que, “enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (missão). A mim me parece igualmente legítimo ver as mesmas características nas quatro “notas” ou “marcas” tradicionais da igreja apresentadas no Credo de Nicéia: que cia é “una, santa, católica e apostólica”. Afinal, o termo “católica” implica em abraçar toda a verdade, e “apostólica” abrange a visão de ser comprometida com a missão apostólica.
É importante que não separemos aquilo que Deus ajuntou. Devemos, pelo contrário, procurar a renovação da igreja em todas as quatro dimensões, simultaneamente, a fim de que ela guarde com fidelidade a revelação que lhe foi confiada de uma vez por todas, tornando-se santificada e unificada por essa verdade que ela preserva, e marche ousadamente para o mundo na missão de testemunho e de serviço que Deus lhe confiou.
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