O QUE A BÍBLIA ME ENSINOU

O que a Bíblia me ensinou

OS DESAFIOS DA SOCIEDADE SECULAR

Uma das coisas que a igreja mais necessita hoje é ter uma consciência sensível para o mundo que nos cer­ca. Se somos de fato servos de Jesus Cristo, nossos olhos (à semelhança dos olhos de Jesus) precisam estar sempre abertos para a necessidade humana e os nossos ouvidos atentos aos gritos de angústia. Assim, tal como Jesus, poderemos reagir de maneira construtiva e compas­siva diante do sofrimento do povo.

Isto não significa que em todas as circunstâncias nós vamos “deixar que o mundo estabeleça a agenda para a igreja”, como se costumava dizer nos anos 60, ou que saiamos trotando que nem um cachorrinho no calcanhar do mundo. Comportar-se de tal forma seria confundir serviço (que é o nosso chamado) com servilismo (que não é o nosso chamado), e interpretar sensibilidade (que é uma virtude) em termos de conformidade (que é um vício). Pelo contrário: primeiro e acima de tudo, precisamos declarar e fazer aquilo que Deus nos enviou a declarar e fazer. Não podemos nos curvar servilmente diante do mundo.

Ao mesmo tempo, se não ouvirmos atentamente as vozes da sociedade secular, tentando compreendê-las e ser sen­síveis às frustrações, à ira, confusão e desespero das pessoas, chorando com os que choram, não haverá em nós auten­ticidade como discípulos de Jesus de Nazaré. Pelo contrá­rio, estaremos, como se diz por aí, correndo o risco de responder perguntas que ninguém está fazendo, coçar onde não há coceira alguma, prover bens para os quais não há nenhuma demanda… Em outras palavras, corremos o risco de ser totalmente irrelevantes — o que, aliás, a igreja tem feito muitas vezes no decorrer da sua história.

Neste capítulo eu gostaria de colocar diante de vocês a tríplice busca dos homens e mulheres modernos e secularizados. Na verdade, trata-se da tríplice aspiração universal do ser humano, aspiração que o próprio Jesus Cristo faz nascer dentro das pessoas, que somente ele pode satisfazer e que desafia a igreja a apresentá-lo ao mundo em sua plenitude.

A BUSCA POR TRANSCENDÊNCIA

Até muito recentemente, “transcendência” era uma pala­vra um tanto obscura e seu uso era limitado às instituições de ensino teológico. Ali os alunos aprendiam a distinguir entre “transcendência” (cujo sentido era Deus acima e fora do mundo criado) e “imanência” (isto é, Deus presente e ativo dentro deste). Hoje em dia, no entanto, quase todo mundo tem alguma ideia do que é transcendência, pois, com a mania da “meditação transcendental”, passou a ser um termo popular. A busca por transcendência é, portanto, a busca pela realidade suprema, que se encontra além do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é, contra a tentativa de eliminar Deus do seu próprio mundo. É um reconhecimento de que os seres humanos “não vivem só de pão”, pois o materialismo não pode satisfazer o espírito humano. Vejamos alguns exemplos da corrente desilusão com o secularismo e da insistente busca por transcendência.

Primeiro, temos o recente colapso do euromarxismo. Eu não estou falando do socialismo como uma ideologia político-econômica, mas de um marxismo clássico, como uma fi­losofia que nega a existência de Deus. Originalmente, o marxismo surgiu como um substituto para a fé religiosa ultrapassada. Mas os convertidos foram poucos e raros. Como escreveu Canon Trevor Beeson acerca da Europa Ocidental nos anos 70, “as doutrinas básicas do comunis­mo não convenceram as mentes nem satisfizeram as emoções da intelligentsia nem do proletariado. Já a vida religiosa tem demonstrado considerável elasticidade e, longe de desaparecer, tem encontrado, em muitas circunstâncias, nova força e vitalidade.” Solzhenitsyn disse algo similar em 1983, referindo-se especificamente à União Soviética. Ele chamou atenção para uma coisa que os líderes sovié­ticos não esperavam:

Numa terra em que as igrejas foram demolidas, onde um ateísmo vitorioso tem se espalhado descontroladamente durante dois terços de século, onde o clero tem sido extremamente humilhado e privado de qualquer indepen­dência, onde o que resta da igreja como instituição só é tolerado por amor à propaganda voltada para o Oci­dente, onde ainda hoje se mandam pessoas para campos de concentração por causa de sua fé, e onde, dentro desses mesmos campos, aqueles que se reúnem para orar na Páscoa são punidos com a clausura — eles (sc. os líderes soviéticos) nunca iriam imaginar que, debaixo desse rolo compressor comunista, a tradição cristã pudesse sobre­viver na Rússia! Mas ainda restam muitos milhões de crentes; só que as pressões externas não deixam que eles se manifestem.

A segunda esfera em que se nota que as pessoas estão desiludidas com o secularismo é o deserto do materialismo ocidental. O secularismo, em sua expressão capitalista, assim como na sua expressão comunista, não consegue mais satisfazer o espírito humano. Theodore Roszak é um eloquente expoente americano desse referido vazio. O seu livro Onde Termina o Deserto (Where the Wasteland Ends) tem um subtítulo muito significativo: Política e Trans­cendência em uma Sociedade Pós-Industrial. Roszak lamenta o que ele chama de “coca-colonização do mundo”. Segundo ele, nós estamos sofrendo de uma “claustrofobia psíquica dentro da cosmovisão científica”, na qual o espírito humano não consegue respirar. Ele ataca a ciência (pseudociência, acho que é o que ele quer dizer) por sua arrogância em declarar que é capaz de explicar todas as coisas, como também seu espírito de desilusão”, sua capacidade de “desfazer os mistérios”. “Afinal de contas, o que a ciência consegue medir é apenas uma parcela daquilo que o homem pode conhecer.” Este mundo ma­terialista da ciência objetiva, continua ele, nem chega a ser “espaçoso o suficiente” para nós. Sem transcendência “as pessoas murcham”. A proposta de Roszak (o resgate da “imaginação visionária” de Blake) é terrivelmente ina­dequada; mas seu diagnóstico certamente acertou o alvo. Lá no íntimo, os seres humanos sabem que a realidade não pode ser confinada a um tubo de ensaio, nem esfregada em uma lâmina para ser examinada num microscópio, nem compreendida através da objetividade fria do método científico. Afinal de contas, a vida tem uma dimensão transcendental e a realidade é “assustadoramente vasta”. Em terceiro lugar, a busca por transcendência é vista na epidemia do abuso de drogas. Existem, naturalmente, muitas e diferentes interpretações sobre este fenômeno quase mundial. Ele não é uma experimentação puramente inocente, nem sempre é um protesto autoconsciente contra os costumes convencionais e nem tampouco é uma tenta­tiva de escapar às duras realidades da vida. Mais do que isso, ele é uma genuína busca por uma “consciência mais elevada” e até mesmo por uma realidade transcendental objetiva. Uma prova disso seria Carlos Castaheda, cujos livros foram extremamente populares no final da década de 60 e na primeira metade da década de 70. Ele dizia ter sido iniciado por um índio yaqui do México, chamado Don Juan. Este lhe ensinara que existem dois mundos de igual realidade: o mundo “comum”, dos seres humanos vivos, e o mundo “incomum”, dos diableros ou feiticeiros. “O que se precisa descobrir exatamente é como atingir a brecha existente entre os mundos e como penetrar no outro mundo… Existe um lugar onde os dois mundos se sobrepõem. Ali é que é a brecha. Ela se abre e fecha como uma porta ao vento.” Quem penetra no outro mundo, o da realidade incomum, é o “homem do conhecimento”; para este é essencial ter um “aliado”, ou seja, “uma força capaz de transportá-lo para além dos limites de si mesmo”. E os dois principais aliados seriam a datura, também chamada de “erva de Jimson” ou “erva do diabo”, que é o aliado feminino e confere poder, e um cogumelo chamado humito ou “fumacinha”, que é o aliado masculino e produz êxtase. A primeira era bebida ou então absorvida através da pele, e este último, fumado. Os resultados eram a “divinização”, a fuga ou ausência do corpo, a adoção de corpos alternativos e até penetrar em objetos ou mover-se através deles.

O quarto exemplo dessa busca por transcendência é a proliferação dos cultos religiosos. Juntamente com o reaparecimento de antigas crenças e o fascínio da juventude ocidental pelo misticismo oriental tem-se verificado a emer­gência de novas religiões. Na Inglaterra já apareceram pelo menos oitocentas desde a Segunda Guerra Mundial, e Alvin Toffler calcula que, nos Estados Unidos, mil novos cultos já conquistaram cerca de três milhões de adeptos. Um dos mais alarmantes foi o movimento do Templo do Povo, em San Francisco, encabeçado por Jim Jones; dentre os seus seguidores, quase mil morreram em “Jonestown”, sua colónia localizada nas selvas da Guiana, em 1978, a maioria em um suicídio coletivo, por ingestão de veneno.

Um dos principais artigos do The Economist advertiu que “começou uma busca cega por novas formas de experiências espirituais”, e acrescentou: “Nessa busca de Deus, é muito fácil acabar caindo nos braços de Satanás, ao invés de Deus.” O sociólogo Peter Berger dá uma explicação si­milar: “A atual onda de ocultismo (inclusive o seu compo­nente diabólico) deve ser entendida como resultado de uma repressão da transcendência na consciência moderna.”

O que mais surpreende entre todas as tendências reli­giosas é o surgimento do movimento da Nova Era. Trata-se de uma bizarra seleção de diversas crenças, mistura de religião e ciência, física e metafísica, panteísmo antigo e otimismo evolucionista, astrologia, espiritismo, reencar­nação ecologia e medicina alternativa. Um dos líderes do movimento, David Spangler, escreve em seu livro Emer­gência: O Renascimento do Sagrado (Emergence: The Rebirth of the Sacred) que “desde muito jovem” ele mesmo já tinha “consciência de uma dimensão superior” ao mundo que o cercava e que ele, à medida que ia ficando mais velho, veio a identificá-la como “uma dimensão sagrada ou transcendental”. “A essência da Nova Era é o renascimento do senso do sagrado”, acrescenta ele.

Eis aqui, portanto, quatro provas contemporâneas de que o materialismo não satisfaz o espírito humano e de que, em virtude disso, as pessoas andam à procura de uma outra realidade transcendental. Elas a procuram em qual­quer lugar: na ioga, na meditação transcendental e nas religiões orientais, no sexo (que Malcolm Muggeridge cos­tumava chamar de “o misticismo dos materialistas”), na música e em outras artes, bem como através de uma consciência mais elevada e induzida pelas drogas, através de cultos modernos e especulações da Nova Era, de peri­gosos experimentos com o oculto e das fantasias da ficção científica.

A primeira reação dos cristãos diante deste complexo fenômeno deveria ser de simpatia. Afinal de contas, nós certamente entendemos o que está se passando, e por quê. Usando as palavras do apóstolo Paulo diante dos filósofos atenienses, homens e mulheres estão “tateando à procura de Deus”, como cegos no escuro, andando às apalpadelas à procura de seu Criador, que os deixa sem descanso até que eles encontrem repouso em Deus. Eles estão mani­festando a busca humana por transcendência. Um exemplo contemporâneo disso foi dado por Richard North, corres­pondente do meio ambiente do periódico The Independent:

É impressionante, quantos sentem necessidade de adorar alguma coisa. Mas, para podermos adorar, precisamos encontrar alguma coisa fora de nós — e melhor do que nós. Para isso é que Deus foi inventado. E a natureza também. Todos nós estamos nos apaixonando pelo meio ambiente como um substituto de Deus e em consequência de nos havermos afastado dele.

Essa busca por transcendência é um desafio à qualidade de adoração que nós, como igreja, vivemos em nossos cultos públicos. Será que ela oferece o que as pessoas desejam — o elemento do mistério, o “senso do divino”, “o temor de Deus”, em linguagem bíblica, ou a “transcendência”, em linguagem moderna? A resposta que eu dou à minha própria pergunta é: “Nem sempre”. A igreja nem sempre é conhecida pela realidade profunda de sua adoração. De maneira especial, nós, os que nos denominamos “evangelicais”, não sabemos bem como adorar. Nossa es­pecialidade é evangelizar — mas adorar, não. Parece que não temos muita consciência da grandeza e da glória de Deus. Nós não sabemos prostrar-nos diante dele em temor e admiração. Não nos damos muito ao trabalho de preparar os nossos cultos de adoração. Estes às vezes são tão mecânicos, superficiais, medíocres, sem graça! Outras vezes são frívolos a ponto de serem irreverentes. Não é de admirar que quem procura a Realidade geralmente passe por nós sem nem perceber!

Nós temos que ouvir novamente as críticas que a Bíblia faz à religião. Nenhum livro, nem mesmo os de Marx e de seus seguidores, acusa tanto a religiosidade vazia como a Bíblia. Os profetas dos séculos VII e VIII antes de Cristo denunciaram com toda franqueza a formalidade e a hipo­crisia dos cultos israelitas. E depois Jesus aplicou a crítica dos profetas aos fariseus de seus dias: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.” E esta acusação, tanto da parte dos profetas como de Jesus, com relação à religiosidade aplica-se perfeitamente a nós e a nossas igrejas, hoje. Nossos cultos são, em grande parte, ritual sem realidade, forma sem poder, diversão sem temor, religião sem Deus.

Mas, então, o que é necessário? Aqui vão algumas su­gestões. Primeiro, a Palavra de Deus precisa ser lida e anunciada com tanta fidedignidade que através dela se faça ouvir a voz de Deus, viva, falando ao seu povo novamente. Segundo, a Ceia do Senhor precisa ser administrada com tanta reverência e expectativa que (e aqui eu escolho minhas palavras com muito cuidado) se verifique uma Presença Real de Jesus Cristo, não nos elementos da Ceia, mas entre o seu povo que está à sua mesa, o próprio Jesus Cristo, objetiva e realmente presente, vindo ao nosso encontro, pronto a fazer-se conhecido por nós no partir do pão e ansioso para entregar-se a nós, de forma que possamos alimentar-nos dele em nossos corações pela fé. Em terceiro lugar, necessitamos uma atitude de sincero louvor e ora­ção, para que o povo de Deus possa dizer como Jacó: “Na verdade o Senhor está neste lugar; e eu não o sabia”, e para que os descrentes ali presentes caiam de joelhos, adorando a Deus e exclamando: “Deus está de fato no meio de vós!”

Enfim, é profundamente lamentável que homens e mu­lheres modernos, em sua busca por transcendência, voltem-se para as drogas, o sexo, a ioga, as seitas, o misticismo, a Nova Era e a ficção científica, ao invés de procurarem a igreja, em cujos cultos de adoração sempre se deveria experimentar a verdadeira transcendência e desfrutar um encontro íntimo com o Deus vivo.

A BUSCA POR SIGNIFICÂNCIA

Existe, no mundo moderno, muita coisa que, além de sufocar o nosso senso de transcendência, reduz também (quando não destrói) o nosso senso de significância pessoal, nossa convicção de que a vida tem algum sentido. Quero men­cionar três dessas tendências.

A primeira é o efeito da tecnologia. A tecnologia pode ser libertadora, evidentemente, quando contribui para livrar as pessoas da enfadonha lida doméstica ou industrial. Mas ela pode ser também terrivelmente desumanizante, quando leva homens e mulheres a sentirem que já não são mais pessoas, mas coisas, “identificadas, não por um ‘nome próprio’, mas por um número de série perfurado em um cartão que foi desenvolvido para viajar pelas entranhas de um computador”.

Em segundo lugar, vem o reducionismo científico. Certos cientistas, de diferentes disciplinas, afirmam que o ser humano não passa de um animal (o “macaco despido” de Desmond Morris, para ser mais preciso), ou nada mais é que uma máquina, programada para produzir respostas automáticas diante de estímulos externos. Foram decla­rações como estas que levaram o falecido professor Donald MacKay a popularizar a expressão inglesa nothing buttery (literalmente: “nada mais que”, nothing but) para explicar a expressão “reducionismo”, bem como a protestar contra qualquer tendência de reduzir os seres humanos a níveis mais baixos que o plenamente pessoal.

Na verdade, nosso cérebro é uma máquina, um meca­nismo altamente complexo. E nossa anatomia e fisiologia Hão iguais às de um animal. Mas isto não é uma definição completa do que é um ser humano. Nós somos mais do que corpo e cérebro. E quando as pessoas afirmam que nós não somos “nada mais que” isto ou aquilo, que elas estão cometendo um sério e perigoso engano.

Em terceiro lugar, o existencialismo tem o efeito de diminuir o senso de significância das pessoas. Pode-se dizer que os existencialistas radicais diferem dos humanistas em geral por seu propósito de levar a sério o seu ateísmo, encarando as suas terríveis consequências. Já que (na opinião deles) Deus está morto, tudo o mais morreu com ele. Já que Deus não existe, também não existem valores nem ideais, nem leis nem padrões, propósitos nem signi­ficados. E, embora eu exista, mesmo assim não existe coisa alguma que dê significado a mim ou à minha existência, a não ser, talvez, a minha decisão de buscar a coragem de ser. Só posso encontrar significado na vida desdenhando a minha própria insignificância. Não há outro meio de autenticar a mim mesmo.

Por mais tristemente heroica que esta filosofia possa pa­recer, deve haver bem poucas pessoas capazes de realizar a mágica de pretender ter significância quando elas sabem que não a têm. Afinal, significância é essencial para a sobrevivência. Foi isso que Viktor Frankl descobriu quan­do, ainda jovem, passou três anos no campo de concentração de Auschwitz. Ele notou que os internos que mais proba­bilidade tinham de sobreviver eram aqueles “que sabiam que havia para eles uma tarefa a realizar”. Posteriormen­te, ele veio a ser professor de Psiquiatria e Neurologia na Universidade de Viena e fundou a “Terceira Escola Vienense de Psiquiatria”. Seu postulado era que, além do “desejo de prazer” de Freud, e o “desejo de poder” de Adler, os seres humanos têm um “desejo de significado”. Com efeito, “a luta para encontrar um significado na vida é a força motivadora primordial de uma pessoa”. Assim, ele desen­volveu aquilo que ele chamou de “logoterapia”, usando logos para significar, não “palavra” nem “razão”, mas “significado”. “A neurose massiva do tempo presente”, escreveu ele, “é o vazio existencial”, isto é, a perda do senso de que a vida tem significado. Às vezes ele perguntava aos seus clientes: “Por que você não comete suicídio?” (aliás, uma pergunta um tanto estranha para um médico fazer a um paciente!). Eles replicavam que havia alguma coisa (quem sabe o seu trabalho, o casamento ou a família) que fazia a vida valer a pena para eles. E sobre isto Frankl se baseava para trabalhar com eles.

A falta de sentido leva à monotonia, ao alcoolismo, à delinquência juvenil e ao suicídio. Comentando sobre a obra de Viktor Frankl, Arthur Koestler escreveu:

Existe no homem uma tendência inerente para sair à procura de significados para preencher e de valores para realizar… Milhares e milhares de jovens estudantes vivem expostos a uma doutrinação… que nega a existência de valores. O resultado disso é um fenômeno que vem se espalhando pelo mundo todo — mais e mais pacientes se acotovelam em nossas clínicas queixando-se de um vazio interior, de uma total e extrema falta de significado na vida.

Conforme Emile Durkheim, em seu clássico estudo sobre o suicídio, o maior número de suicídios é causado pela anomia, que poderia ser considerada a “falta de normas” ou “falta de significado”. E o suicídio “anômico” ocorre quando uma pessoa, ou não tem objetivo algum na vida, ou então persegue um objetivo inatingível, seja ele poder, sucesso ou prestígio. “Nenhum ser humano pode ser feliz ou mesmo existir, a não ser que suas necessidades sejam suficientemente proporcionais aos seus meios.”

Se a busca por transcendência foi um desafio para a qualidade de adoração da igreja, a busca por significância é um desafio à qualidade de ensino da igreja. Milhões de pessoas não sabem quem elas são, nem que elas têm algum significado ou valor. Daí o nosso urgente desafio: dizer-lhes quem elas são, esclarecer-lhes acerca da sua identi­dade, isto é, ensinar-lhes, sem nenhum compromisso, toda a doutrina bíblica referente a nossa condição de humanos: corrupção, sim, mas também (e, acima de tudo, neste contexto) dignidade.

Como cristãos, nós acreditamos no valor intrínseco dos seres humanos, em virtude de nossas doutrinas da criação e da redenção. Como vimos no capítulo 1, Deus nos criou homem e mulher à sua própria imagem e nos fez mordomos responsáveis por cuidar da terra e de suas criaturas. Ele aos dotou de faculdades racionais, morais, sociais, cria­tivas e espirituais, que fazem de nós seres iguais a ele e diferentes dos animais. Os seres humanos são semelhantes a Deus. É verdade que, em consequência da queda, nossa semelhança com Deus foi corrompida, mas não destruída. Além disso, “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho” para a nossa redenção. A cruz é a maior evidência pública do valor que Deus nos dá.

O ensinamento cristão sobre a dignidade e o valor do ser humano é de suma importância hoje, não só por amor à nossa própria autoimagem, mas ainda mais para o bem-estar da sociedade.

Quando os seres humanos são desvalorizados, tudo o mais na sociedade se estraga. As mulheres são humilhadas e as crianças desprezadas. Os enfermos são considerados um incómodo e os idosos um fardo. As minorias étnicas são discriminadas. Os pobres são oprimidos e lhes é negada justiça social. O capitalismo põe à mostra seu lado mais desprezível. O trabalho é explorado nas minas e nas fá­bricas. Os criminosos são brutalizados na prisão. Opiniões contrárias se polarizam. Belsen é inventado pela extrema direita e Gulag pela extrema esquerda. Os descrentes ficam à deriva, para viver e morrer em sua perdição. Não há liberdade, nem dignidade, nem prazer e alegria. A vida humana já não merece ser vivida, pois chegou a tal ponto que mal pode ser considerada humana.

Mas quando os seres humanos são valorizados como pessoas, em virtude de seu valor intrínseco, tudo muda. Homens, mulheres e crianças são honrados. Os enfermos são cuidados e os idosos capacitados a viver e morrer com dignidade. Os dissidentes são ouvidos, os prisioneiros rea­bilitados, as minorias protegidas e os oprimidos libertados. Os trabalhadores recebem salário digno, condições de trabalho decentes e uma parcela de participação, tanto na gerência como nos lucros da empresa. E o evangelho é levado até os confins da terra. E por que isso? Porque as pessoas importam. Porque todo homem, mulher e criança tem valor e significado como ser humano criado à imagem e semelhança de Deus.

A BUSCA DE COMUNHÃO

A moderna sociedade tecnocrata, que destrói a trans­cendência e a significância, destrói também a comunhão. Nós vivemos em uma era de desintegração social. As pessoas acham incrivelmente difícil relacionar-se umas com as outras. Assim, nós continuamos perseguindo exatamente aquilo que foge de nós — amor em um mundo sem amor. Quero chamar como testemunhas três pessoas completa­mente diferentes.

A primeira é Madre Teresa. Nascida na Iugoslávia, ela partiu para a Índia quando tinha apenas 17 anos de idade. Então, após cerca de vinte anos ensinando, ela desistiu da sua profissão a fim de servir aos mais pobres dentre os pobres de Calcutá. No mesmo ano (1948), tornou-se cidadã indiana, e dois anos mais tarde fundou a sua nova ordem, a dos “Missionários de Caridade”. Assim a Índia foi seu lar por mais de sessenta anos. Portanto, sua voz e sua visão são uma autêntica voz e visão do Terceiro Mundo. Eis o que ela escreveu sobre o Ocidente:

Hoje as pessoas vivem sedentas de amor e de compreen­são, que é… a única resposta para a solidão e a enorme pobreza. E por isso que nós (sc. as irmãs e os irmãos de sua ordem) podemos ir a países como a Inglaterra, América e Austrália, onde não existe fome de pão. Existe, porém, gente sofrendo de solidão, terrível desespero, um ódio terrível, sentindo-se indesejadas, inúteis e sem esperança. Essas pessoas esqueceram o que é sorrir, esqueceram a beleza do toque humano. Estão esquecendo o que é o amor humano. Elas precisam de alguém que as compreenda e respeite.

Lembro-me de que, a primeira vez que li esta avaliação do mundo ocidental, eu fiquei um pouco indignado e a considerei um exagero. Mas de lá para cá eu mudei de opinião. Acho que ela é acurada, pelo menos como uma generalização.

Minha segunda testemunha é Bertrand Russell, o brilhan­te matemático e filósofo, e ateu descompromissado. Ele escreveu com emocionante candura no Prólogo da sua au­tobiografia:

Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, têm governado a minha vida: o anseio por amor, a busca de conhecimento e uma insuportável compaixão pelo sofri­mento da humanidade. Estas paixões, como grandes ventos, têm me atirado para cá e para lá, em um curso sem destino, sobre um profundo oceano de angústia, atingindo as raias do desespero. Eu busquei amor, primeiro, porque ele produz êxtase… Procurei-o, depois, porque ele alivia a solidão — essa terrível solidão em que a fragmentada consciência da gente olha por sobre as margens do mundo para o frio e insondável abismo sem vida…

Depois vem Woody Allen, minha terceira testemunha. A maioria das pessoas só vê nele um comediante (aliás, ele já vendia suas piadas à imprensa quando ainda estava no colégio), mas “dentro do comediante existe um trági­co”. Com todo o seu aclamado brilhantismo como escri­tor, diretor e ator, ele parece nunca ter encontrado, nem a si mesmo, nem a ninguém mais. Woody Allen descreve o ato de fazer amor como “dois psicopatas debaixo de uma coberta”. Em seu filme Manhattan (1979), ele satiriza as pessoas, dizendo que estas deveriam “acasalar-se para a vida toda, como os pombos e os católicos”; mas ele mesmo parece ser incapaz de seguir o seu preceito. Ele confessa que todos os seus filmes “tratam da maior de todas as dificuldades: as relações de amor. Todo mundo o encontra. Ou as pessoas estão apaixonadas, ou elas estão para se apaixonar, ou tentando livrar-se de um amor, ou procu­rando um meio de evitá-lo”. Ao fazer o seu retrato, seu biógrafo termina com estas palavras: “Ele vive lutando, assim como nós lutamos, para ter forças para encontrar uma vida baseada no amor. Como diz o personagem em Hannah e Suas Irmãs, ‘Quem sabe os poetas estejam certos. Talvez o amor seja a única resposta…’.”

Eis aqui três pessoas de contextos, convicções, tem­peramentos e experiências bem diferentes, que, no entanto, concordam uma com a outra no que concerne à incompa­rável importância do amor. Elas falam pela raça humana. Todos nós sabemos, lá dentro de nosso íntimo, que o amor é indispensável para a nossa humanidade. É isso que é a vida: ela é feita de amor.

Por isso as pessoas o buscam em toda parte. Pelo menos a partir dos anos 60, muita gente vem rompendo com o individualismo ocidental e experimentando estilos de vida comunitários. Outros tentam substituir o núcleo familiar (tradicional no Ocidente) pela grande família (que, durante séculos, tem sido a tradição na África e na Ásia). Outros, porém, resolveram repudiar a secular instituição do ma­trimônio e da família, numa tentativa (vã e tola, na opinião dos cristãos) de desta forma encontrar o caminho para a liberdade e a espontaneidade do amor. Todo mundo vive à procura de comunhão genuína e de relações de amor autênticas. A lírica do musical Aspectos do Amor, de Andrew Webber, diz tudo:

O amor, o amor muda tudo:

muda mãos e faces, muda terra e céu. O amor, o amor muda tudo:

como se vive e também como se morre. O amor faz o verão voar

ou uma noite parecer uma vida inteira. Sim, o amor, o amor muda tudo;

hoje eu tremo ao escutar seu nome. Nada no mundo será mais igual.

O amor, o amor muda tudo:

os dias são mais longos, palavras sem sentido. O amor, o amor muda tudo:

a dor é mais profunda do que antes já foi. É nosso amor que faz girar o mundo

e esse mundo há de durar para sempre. O amor, o amor muda mudo,

traz-nos glória e nos traz vergonha. Nada no mundo será mais igual.

O terceiro desafio do mundo, portanto, tem a ver com a qualidade da comunhão da igreja. Nós anunciamos que Deus é amor e que Jesus Cristo oferece verdadeira comu­nhão. Dizemos que a igreja faz parte do evangelho. Decla­ramos que o propósito de Deus não é meramente salvar indivíduos isolados, perpetuando assim a sua solidão, mas é construir uma igreja, criar uma nova sociedade e até uma nova humanidade, em que serão abolidas as barreiras raciais, sexuais, nacionais e sociais. E esta nova comuni­dade de Jesus tem a ousadia de apresentar-se como a verdadeira sociedade alternativa, que ofusca os valores e os padrões do mundo.

Esta é uma afirmação que fala muito alto. O trágico, porém, é que a igreja sempre deixa de viver de acordo com esses novos ideais. Sua compreensão teológica acerca do seu chamado pode ser impecável. Mas, comparativamente falando, existe pouca aceitação, pouco cuidado e pouco amor e apoio mútuo entre nós. Em nossas igrejas deveria estar chovendo gente em busca de comunhão, especialmen­te se elas oferecem experiência de grupos pequenos. Mas, ao invés disso, o que acontece muitas vezes é que a igreja é justamente o lugar que eles nem se dão ao trabalho de procurar, tão certos estão de que ali não acharão amor.

Mel White, escritor e cineasta cristão, resolveu inves­tigar as causas do trágico suicídio em massa ocorrido em Jonestown, nas selvas da Guiana, em 1978, e publicou as suas descobertas em um livro e num filme intitulados Deceived (Enganados). “Como é que isso aconteceu?”, per­guntou ele. “O que podemos fazer para evitar que aconteça novamente?” Falando tanto com desertores como com sobreviventes, ele descobriu, para sua surpresa, que “as vítimas de Jones vinham de nossas igrejas” (título do primeiro capítulo de seu livro), onde não haviam encon­trado amor. Jean Mills, por exemplo, que desertou depois de sete anos, disse: “Eu fui mandado embora um monte de vezes, de cada igreja que eu procurava, porque ninguém se importava comigo.” E Grace Stoen, cujo marido, Tim, que era advogado, havia se tornado o segundo homem mais poderoso no Templo do Povo em San Francisco, disse: “Eu frequentei a igreja até completar dezoito anos… e nunca ninguém fez amizade comigo.” No Templo do Povo, porém, de acordo com Jean Mills, “todo mundo parecia tão amo­roso e atencioso. Eles nos abraçavam e nos faziam sentir-nos bem-vindos… e diziam que… queriam que voltásse­mos.” Foi esta descoberta que levou Mel White a apre­sentar, no último capítulo de seu livro, intitulado “Não Deve Acontecer de Novo”, oito resoluções. Esta foi a pri­meira: “Farei o melhor possível para ajudar a fazer de minha igreja uma comunidade mais atenciosa para com os seus membros e os estranhos em nosso meio.”

Seria injusto, porém, ver apenas as coisas negativas ao se avaliar a igreja contemporânea. Afinal existem, pelo mundo todo, comunidades cristãs em que se encontra amor verdadeiro, sacrificial, atencioso e apoio mútuo. Onde quer que floresça esse tipo de amor, seu magnetismo é quase irresistível, como bem expressa Stephen Neill:

Na comunidade daqueles que são unidos por uma leal­dade pessoal a Jesus Cristo, a relação de amor atinge uma intimidade tão intensa que não se conhece em qualquer outro lugar. A amizade entre os amigos de Jesus de Nazaré não tem paralelo em nenhuma outra amizade. Esta deveria ser uma experiência normal dentro da comunidade cristã… O fato de isto ser tão raro nas comunidades cristãs é uma manifestação do fracasso da igreja em geral em viver de acordo com o propósito de seu Fundador para ela. Onde quer que se experimente essa amizade, especialmente ultrapassando barreiras de raça, nacionalidade e língua, isto é uma das evidências mais convincentes da constante atuação de Jesus entre os homens.

Aqui está, pois, a tríplice busca em que estão engajados os seres humanos. Embora eles provavelmente não a ar­ticulem desta forma, acho que podemos dizer que, ao bus­carem transcendência, eles estão tentando encontrar a Deus; ao buscarem um significado na vida, estão tentando encontrar a si mesmos; e, ao buscarem uma comunidade, estão tentando encontrar o próximo. E é nisto que consiste a busca universal da humanidade: por Deus, pelo próximo e por nós mesmos.

Além disso, como diz a afirmação cristã (confiante eu sei, humilde eu espero) é que quem busca, acha — em Cristo e em sua nova sociedade. A meu ver, a busca contemporânea deste século é um dos maiores desafios (e oportunidades) com os quais a igreja jamais se defrontou: as pessoas pro­curam abertamente justo aquilo que Jesus Cristo oferece!

A única questão é se a igreja pode ser tão profundamente renovada pelo Espírito e pela Palavra de Deus que ela ofereça uma experiência de transcendência através da sua adoração, de significância através do seu ensino e de uma comunidade através de sua comunhão. Pois, se isto acon­tecer, as pessoas se voltarão ansiosamente para ela em sua busca, e nossa proclamação das boas novas terá uma credibilidade que, de outra forma, sempre nos faltará.

PSICOLOGIA ANALÍTICA

Bons habitos, maus habitos

 

BONS HABITOS, MAUS HABITOS

 Cientistas identificam circuitos cerebrais que participam da aquisição e manutenção tanto de comportamentos que nos fazem bem quanto de formas automáticas de agir que terminam nos prejudicando. Entender como esses processos funcionam no nível neurológico pode ajudar a fazer boas escolhas.

De que lado da cama você se levantou hoje? Escovou os dentes? Que alimentos escolheu no café da manhã? Qual caminho percorreu ao sair de casa? Se parar para pensar em tudo o que costuma fazer todos os dias, talvez se surpreenda com a quantidade de hábitos que mantém. Muitos desses comportamentos, como dirigir por um trajeto conhecido, funcionam no “piloto automático” para que o cérebro não se sobrecarregue concentrando-se em cada um dos inúmeros pequenos ajustes ao volante ou detalhes da paisagem. Algumas rotinas são bem-vindas, fazem muito bem à saúde – é o caso dos exercícios físicos, da meditação e do uso frequente do fio dental. Já fisgar regularmente uma guloseima do pote de doces meramente porque estamos habituados a isso {e muitas vezes nem sequer nos atemos ao sabor do alimento) pode ser bastante prejudicial. O problema são as atitudes que vagueiam pelo território dos excessos, das compulsões e das dependências – e podem até mesmo ameaçar a vida.

Embora os hábitos ocupem boa parte do nosso cotidiano, cientistas têm dificuldade em identificar como o cérebro converte um comportamento novo em rotina. Nos últimos tempos, porém, algumas descobertas permitiram que neurocientistas decifrassem mecanismos neurais subjacentes a rituais cotidianos. Talvez o achado mais importante seja a definição de nossos circuitos de hábito – regiões e conexões cerebrais responsáveis pela criação e manutenção de rotinas. Na prática, essas informações são fundamentais para definir como nosso cérebro constrói bons hábitos e por que é tão difícil evitar comportamentos arraigados, mesmo sabendo que não nos fazem bem. A pesquisa sugere que, ao nos propormos deliberadamente a controlar os hábitos, a possibilidade de atingirmos esse objetivo é muito grande. Ou seja: talvez não sejamos tão reféns de nossos costumes quanto às vezes imaginamos. Dessa perspectiva surge uma constatação importante do ponto de vista neurocientífico: mesmo quando parece que estamos agindo automaticamente, parte do cérebro monitora nosso comportamento.

COMIDA, JOGO E FOGO

Hábitos parecem se destacar como ações bem definidas, mas, neurologicamente, se classificam ao longo de um continuum do comportamento. Numa das extremidades dessa “linha” está aquilo que pode ser executado quase que automaticamente, liberando espaço no cérebro para atividades diversas – escovar os dentes se enquadra aí. Do outro lado estão os que podem exigir muito tempo e energia – como a edição deste texto que você lê agora ou, ainda mais, falar em público caso a pessoa não esteja acostumada a isso. Os hábitos surgem naturalmente ao explorarmos ambientes físicos e sociais e entrarmos em contato com o que sentimos. Experimentamos comportamentos em contextos específicos, descobrimos quais parecem satisfatórios e não muito dispendiosos e, depois, nos comprometemos com eles, formando rotinas.

Por exemplo, se uma pessoa começou a roer as unhas em momentos de ansiedade e isso lhe trouxe um conforto imediato, é bastante provável que incorpore esse comportamento.

Iniciamos esse processo quando muito jovens, e, em certos casos, ele apresenta uma contrapartida, que pode agir contra nós. Quanto mais rotineiro um comportamento, menos ficamos conscientes dele. Daí surgem perguntas: desliguei o fogão antes de sair de casa? Fechei a porta com chave? Essa perda de vigilância pode não só interferir no funcionamento diário como permitir a criação de hábitos indesejados. Não raro, pessoas que engordam alguns quilos de repente percebem que estão comendo cada vez mais, sem se dar conta disso.

Essa dificuldade em verificar ações cotidianas também significa que hábitos podem se tornar semelhantes a compulsões. É o caso de jogos pela internet, postagens constantes (e em geral desnecessárias) de mensagens e fotos – e, claro, uso de álcool e de drogas. Um padrão marcado pela repetição e pelo excesso de foco pode assumir parte do que era escolha deliberada. Neurocientistas ainda debatem se compulsões são como hábitos normais, apenas mais intensos, embora certamente possam ser consideradas como exemplos extremos, na ponta oposta do continuum. E mostram que certas condições neuropsiquiátricas – como o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), em que pensamentos ou ações invasivos se tornam frequentes, formas de depressão nas quais pensamentos negativos aparecem em ciclo contínuo e formas radicais de hábito – podem estar relacionadas a autismo e a esquizofrenia.

Embora hábitos possam ser classificados em diferentes categorias do espectro de comportamento, compartilham certas características fundamentais. Assim que se formam, por exemplo, são persistentes. Diga a si mesmo “pare de fazer” algo e verá que, na maioria das vezes, a admoestação falha. É mais provável que a crítica ocorra tarde demais, depois de o comportamento ter se instalado e aparecerem consequências.

Essa situação, em especial, é um indício para desvendar circuitos cerebrais responsáveis pela formação e manutenção do hábito. Eles se tornam tão arraigados que os seguimos mesmo contra a vontade, em parte devido ao que chamamos de “contingências de reforço”. Diga que fará A e, depois, você será recompensado de alguma maneira. Se fizer B, não terá recompensa nem será punido. Essas consequências de nossas ações – as contingências – impulsionam o comportamento futuro de uma forma ou outra. Sinais identificados no cérebro parecem corresponder a esse aprendizado relacionado ao reforço, como revelam estudos originalmente realizados pelos neurocientistas Wolfram Schultz e Ranulfo Romo, ambos, na época, da Universidade de Friburgo, Suíça. Hoje em dia, esses trabalhos são desenvolvidos por cientistas computacionais. Especialmente relevantes são os “sinais de erro de predição de recompensa” que revelam a avaliação da mente sobre qual exatamente é a eficiência de uma previsão de reforço futuro. De alguma forma, o cérebro calcula essas avaliações que esculpem nossas expectativas e adicionam ou subtraem valor a partir de cursos específicos de ação. Ao monitorar ações internamente e adicionar um peso positivo ou negativo a elas, o cérebro reforça comportamentos específicos, deslocando ações de deliberadas para habituais – mesmo quando sabemos que não devemos jogar ou comer demais.

Nós e outros cientistas refletimos sobre o que se passa no cérebro para provocar essa mudança e se era possível interrompê-la. Nosso grupo iniciou experimentos no laboratório de Ann Graybiel, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), para decifrar quais vias cerebrais estavam envolvidas na formação de rotinas e como sua atividade poderia mudar. Primeiro, precisávamos de um teste experimental para determinar se um comportamento é um hábito. Um teste criado pelo psicólogo britânico Anthony Dickinson, na década de 80, ainda é bastante utilizado. Ele e seus colegas treinaram ratos de laboratório a pressionar uma alavanca em uma caixa experimental para receber uma guloseima como recompensa.

PARA NÃO ESQUECER

Quando os animais assimilaram bem essa tarefa e voltaram às gaiolas, os pesquisadores “desvalorizaram” a recompensa, deixando os ratos comerem a recompensa até ficarem super saciados, ou ministrando uma droga que produzia leve náusea após a recompensa ser consumida. Posteriormente, levaram os ratos de volta à caixa experimental, com a opção de pressionar a alavanca ou não. Se um rato pressionava a alavanca, mesmo que a recompensa tivesse sido insatisfatória, Dickinson considerava o comportamento como hábito. Mas, se um rato estava atento e “consciente” (se é que podemos falar de consciência de um rato), então ele não pressionava a alavanca por perceber a recompensa como algo desagradável. Ou seja, nesse caso, o hábito não se formava. O teste permitiu aos cientistas uma maneira de verificar se uma mudança de comportamento proposital para habitual havia ocorrido ou não.

Usando variações desse teste básico os pesquisadores Bernard Balleine, da Universidade de Sydney, e Simon Killcross, da Universidade de New South Wales, na Austrália, descobriram indícios de que diferentes circuitos cerebrais assumem a liderança conforme ações deliberadas se tornam habituais. Novas evidências obtidas com experiências feitas com ratos, macacos e humanos agora apontam para circuitos múltiplos que interconectam o neocórtex e o corpo estriado, no centro dos núcleos da base, mais primitivo, instalados no cerne do nosso cérebro. Esses circuitos se tornam mais ou menos envolvidos conforme agimos de forma deliberada ou por hábito.

Ensinamos ratos e camundongos a executar comportamentos simples. Em uma tarefa, eles aprenderam a correr por um labirinto em forma de T assim que ouviam um clique. Dependendo de uma “instrução” sonora que soava depois, enquanto corriam, eles virariam à esquerda ou à direita em direção ao topo do T e correriam até aquela extremidade para receber um tipo ou outro de recompensa. O objetivo era entender como o cérebro julga os prós e contras de determinado comportamento e depois grava uma sequência de comportamentos como um “padrão”, um hábito. Nossos ratos certamente desenvolveram hábitos. Mesmo quando uma recompensa se tornava desagradável, os ratos corriam para ela ao som da instrução.

Para descobrir como o cérebro grava um comportamento que se torna um hábito, o laboratório do MIT começou a gravar a atividade elétrica de pequenos grupos de neurônios (células cerebrais) no corpo estriado. As descobertas de nosso grupo nos surpreenderam. Quando os ratos percebiam o labirinto pela primeira vez, neurônios na parte do controle motor no corpo estriado ficavam ativos durante todo o tempo em que os ratos corriam. Mas, quando o comportamento se tornou mais habitual, a atividade neuronal começou a se acumular no início e final das corridas e se acalmou durante a maior parte desse intervalo. Era como se todo o comportamento se tornasse programado, com as células do corpo estriado percebendo o início e o fim de cada corrida. Era um padrão incomum: parecia que as células do corpo estriado ficavam maleáveis e podiam ajudar a “acumular os movimentos”, deixando relativamente poucas células especialistas lidarem com os detalhes do comportamento.

Esse padrão nos lembrou a forma como o cérebro fixa memórias. Sabemos como é útil lembrar uma sequência de números em blocos maiores, em vez de um a um, como ao pensarmos em um número de telefone como 555-1212 em vez de 5-5-5-1-2-1-2. O falecido psicólogo americano George A Miller cunhou o termo “segmentação” para se referir a esse bloco de itens em uma unidade de memória. A atividade neural dos ratos observada no início e no fim da corrida pareceu semelhante. É como se o corpo estriado estabelecesse marcadores de limites para blocos de comportamento – hábitos – que o processo de avaliação interna decidiu que deveriam ser armazenados. Se for verdade, essa manobra significaria que essencialmente o corpo estriado nos ajuda a combinar uma sequência de ações em uma unidade única. Você vê o pote de doce, automaticamente o pega, busca uma guloseima e a come “sem pensar”.

Cientistas identificaram também um “circuito de deliberação”, que envolve outra parte do corpo estriado e se ativa quando as escolhas não são feitas no piloto automático, demandando alguma tomada de decisão. Para entender a interação entre esses circuitos de deliberação e de hábitos, a pesquisadora Catherine Thorn, de nosso grupo, registrou sinais em ambos os circuitos simultaneamente. Quando os animais aprendiam uma tarefa, a atividade na área de deliberação do corpo estriado se tornava intensa durante o meio das corridas, especial­ mente para definir o caminho a tomar na parte superior do T, baseados na instrução sonora.

Esse padrão foi quase o exato oposto do padrão de segmentação que observamos no hábito no corpo estriado. Ainda assim a atividade recuou quando o comportamento se tornou totalmente habitual. O padrão significa que, à medida que fixamos hábitos – pelo menos como fazem os ratos – circuitos relacionados a esses comportamentos ganham força, mas também ocorrem alterações neles.

Como o corpo estriado trabalha em conjunto com uma parte do neocórtex vinculada ao hábito, na parte frontal do cérebro conhecida como córtex infralímbico, gravamos a atividade nessa região. Isso também foi revelador. Embora observássemos o mesmo acúmulo no início e no fim da atividade habitual do corpo estriado, durante o período de aprendizagem inicial vimos uma mudança muito sutil no córtex infralímbico. Só depois de os animais terem sido intensamente treinados e o hábito ter se fixado é que a atividade infralímbica se alterou. Surpreendentemente, quando isso ocorreu um padrão de segmentação se desenvolveu ali. Era como se o córtex infralímbico fosse o “sábio”, aguardando até o sistema de avaliação do corpo estriado decidir que o comportamento deveria ser mantido, antes de engajar a porção maior do cérebro nele.

LIGAR E DESLIGAR

Decidimos testar se o córtex infralímbico tem controle imediato sobre a expressão de um hábito. Para isso usamos a optogenética. Com essa nova técnica, poderíamos colocar moléculas sensíveis à luz em uma minúscula região do cérebro e, então, iluminando-a, “ligar e desligar” os neurônios dessa região. Experimentamos desligar o córtex infralímbico em ratos que assimilaram completamente o hábito no labirinto, formando o padrão de fragmentação. Quando desligamos o neocórtex apenas por alguns segundos enquanto os ratos corriam, bloqueamos totalmente o hábito.

O hábito podia ser bloqueado rapidamente, às vezes de imediato, e esse bloqueio permaneceu até depois do desligamento da luz. Os ratos, no entanto, não pararam de correr pelo labirinto. Apenas as corridas costumeiras para a recompensa desvalorizada não ocorreram mais. Os animais ainda corriam para alcançar a recompensa positiva do lado oposto do labirinto. Na verdade, enquanto repetíamos o teste, os ratos desenvolviam um novo hábito: correr para o lado positivo da recompensa do labirinto, independentemente do estímulo que recebiam. Quando, posteriormente, inibimos a mesma área do córtex infralímbico, bloqueamos o hábito novo – e o antigo reapareceu instantaneamente. Esse retorno à rotina antiga ocorreu em questão de segundos e permaneceu em todas as corridas que testamos, sem que tivéssemos de desligar o córtex infralímbico.

Muitas pessoas conhecem a sensação de ter se dedicado intensamente para quebrar um hábito e logo retornar a ele, com força total, após um período estressante. Quando o cientista russo Ivan Pavlov estudou esse fenômeno em cães, há muitos anos, concluiu que os animais nunca se esqueciam de comportamentos profundamente condicionados como os hábitos. O máximo que podem fazer é suprimi-los. Est amos diante da mesma permanência de hábitos em nossos ratos. Mas, curiosamente, podemos ligá-los e desligá-los pela manipulação de uma pequena porção do neocórtex durante o comportamento real. Não sabemos até que ponto esse controle poderia ir. Se ensinarmos aos ratos três hábitos diferentes em sequência, por exemplo, e depois bloquearmos o terceiro, o segundo hábito aparecerá? E se, depois, bloquearmos o segundo, o primeiro aparecerá?

Uma questão essencial é se poderíamos evitar a formação do hábito, em primeiro lugar. Treinamos ratos apenas o suficiente para vê-los chegar ao final correto do T, mas não o suficiente para o comportamento instalar-se como rotina. Depois, continuamos o treinamento, mas ao longo de cada corrida usamos a optogenética para inibir o córtex infralímbico. Os ratos continuaram correndo bem pelo labirinto, mas nunca adquiriram o hábito, apesar de muitos dias de treinamento intensivo, que teria tornado essa característica permanente. Um grupo de controle de ratos submetido ao mesmo treinamento, sem a interrupção da optogenética, desenvolveu os hábitos normalmente.

Não é de admirar que hábitos sejam tão difíceis de romper. Eles se tornam fixos e gravados como blocos aparentemente padronizados de atividade neural, processo que envolve a operação de vários circuitos cerebrais. Surpreendentemente, no entanto, embora pareçam quase automáticos, hábitos estão sob controle contínuo de pelo menos parte do neocórtex, e essa região deve estar sempre ativa para ele se fixar. É como se estivessem lá, prontos para agir se o neocórtex determinar que as circunstâncias são favoráveis. Mesmo se não tivermos consciência desse controle sobre comportamentos habituais – afinal, essa é a maior parte de seu valor para nós -, temos circuitos que os monitoram sem interrupção. Podemos estender a mão para o pote de doces sem “pensar”, mas um sistema de vigilância no cérebro está em operação, como o de monitoramento de voo em um avião.

Provavelmente ainda vai demorar muito até alguém usar um interruptor para desviar hábitos irritantes. Os métodos experimentais que nós e outros pesquisadores estamos usando ainda não podem ser empregados diretamente em pessoas, mas a neurociência se transforma à velocidade da luz, e, nós, desse campo, estamos nos aproximando de algo de fato importante: as regras pelas quais os hábitos operam. Se pudermos entender de forma mais ampla como eles são formados e rompidos, poderemos entender melhor nossos comportamentos idiossincráticos e saber como alterá-los.

Também é possível que nosso conhecimento em expansão possa até ajudar pessoas na extremidade final – e mais grave – do espectro do hábito, oferecendo indícios sobre como tratar o distúrbio obsessivo-compulsivo, síndrome de Tourette, fobia ou transtorno de estresse pós-traumático. Se você quer se condicionar a correr pela manhã, então na noite anterior talvez deva colocar os tênis de corrida onde possa vê-los ao acordar no dia seguinte. Essa pista visual imita a sugestão sonora utilizada para treinar ratos – e pode ser especialmente eficaz se você se recompensar após a corrida. Faça isso de forma que seu cérebro possa desenvolver o padrão de segmentação desejado. Ou, se quiser abrir mão do pote de doces, retire-o de perto – eliminando o estímulo.

Certo, sabemos que alterar costumes não é fácil. É como escreveu Mark Twain: “Hábito

é hábito, e não pode ser atirado pela janela por qualquer pessoa, mas sim persuadido a descer os degraus passo a passo”. Nossos experimentos, no entanto, nos conduzem a um ponto de vista otimista: aprendendo mais sobre como o cérebro fixa e mantém rotinas, talvez se torne menos sofrido se convencer a evitar ações indesejáveis e adotar comportamentos que fazem bem.

ANN M. CRAYBIEL é professora e pesquisadora do Instituto para Pesquisa do Cérebro McCovern do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

KYLE S. SMITH é professor ­ assistente de ciências da psicologia e do cérebro no Dartmouth College.

GESTÃO E CARREIRA

A uberização da mão de obra

A UBERIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA

A Popularização dos serviços prestados por meio de aplicativos incendeia a discussão sobre o limite das obrigações entre as empresas e o trabalhador

O Tribunal Regional do Trabalho de Belo Horizonte, em Minas Gerais, recentemente foi palco de um debate que vem sendo travado na esfera pública e legal em muitos países: existe relação laboral nas empresas de compartilhamento de serviços? Para o juiz Filipe de Souza Sikert, da 37ª Vara do Trabalho de BH, a resposta é não. Na sentença de 30 de janeiro, a primeira desse tipo no Brasil, o magistrado recusou o pedido de um motorista para que a Uber pagasse suas férias, seu 13º e outras despesas. Menos de 15 dias depois, em 13 de fevereiro, no mesmo tribunal, só que desta vez na 33ª Vara Judicial, o juiz Márcio Toledo Gonçalves concluiu o oposto. Não só reconheceu vínculo empregatício entre o motorista e a mesma Uber como também obrigou a companhia a pagas todos os direitos trabalhistas. Em sua sentença, ele julgou que, após o fordismo e o toyotismo, estamos entrando na “era do uberismo” – quando seria fácil para as organizações contratar mão de obra por meio de aplicativos para se livrar das obrigações trabalhistas.

As duas decisões representam a polarização que ocorre sempre que uma nova tecnologia remexe o mercado. Frutos da crise de 2008, que obrigou trabalhadores a buscar renda extra, as empresas de economia compartilhada trouxeram de forma repaginada o antigo hábito das pessoas de trocar produtos e serviços entre si. Surgiram companhias de transportes sem um único carro ou de hospedagem sem nenhum quarto, e cada vez mais profissionais aceitaram permutar esforço e conhecimento com desconhecidos por meio de plataformas digitais. “A tecnologia propiciou que processos existentes fossem repensados, atendendo alguns apelos para a melhor utilização dos recursos produtivos e a otimização de serviços”, dia a professora Neusa Borges, do Centro de Inovação e Criatividade da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Porém, não dá para confundir negócios de economia compartilhada com os de economia colaborativa. Diferentemente do que fazem as de economia colaborativa, as empresas de economia compartilhada conectam alguém que precisa de um produto ou serviço com outro alguém que oferece tal produto ou serviço; entretanto, não repartem seus lucros com os membros da rede. A mais famosa dessas companhias, a Uber, foi considerada pelo Wall Street Journal a segunda startup mais valiosa, com um valor de mercado estimado em 41,2 bilhões de dólares. Na outra ponta, seus motoristas amargam dívidas de até 97 000 dólares, como relatou um deles num vídeo que viralizou na internet. A Uber não quis participar desta reportagem.

A evolução desse tipo de empreendimento mexe tanto com os costumes sociais quanto com a regulamentação do setor. Não faz muito tempo, taxistas saíram na mão, literalmente, com motoristas particulares reivindicando uma legislação que impedisse os aplicativos de caronas de monopolizar o setor de transporte. “Do mesmo jeito que se percebeu que essas companhias poderiam apresentar concorrência desleal de mercado e, por isso, surgiu a necessidade de uma lei, a discussão agora se volta para o vínculo entre as pessoas que trabalham por meio desses aplicativos e as firmas que os oferecem”, dia a professora da ESPM.

Quando diversos estudos sobre o futuro do trabalho apontam que a mão de obra será contratada ocasionalmente, por projetos ou necessidade, o crescente número de negócios baseados em aplicativos incendeia a discussão sobre os limites e as obrigações de cada parte – trabalhadores e empregadores. De quem é a responsabilidade por um serviço malfeito se o executor não responde diretamente à empresa? Se um motorista chamado por um app bate o carro, quem deve pagar as despesas médicas do passageiro? Numa época em que tanto se fala da necessidade de engajar pessoas, como exigir tal comprometimento de alguém que recebe tão pouco de contrapartida? Qual é o papel do profissional de recursos humanos ao gerir essa massa de profissionais desvinculada?

O debate passa pelas diferentes visões sobre a função do estado e das corporações na economia e na sociedade. Entre críticos e defensores da uberização da mão de obra só há um consenso: essas organizações não se enquadram em nenhuma lei que temos hoje.

BEM-ME-QUER, MAL ME QUER

A internet mudou as relações mais rápido do que a legislação conseguiu acompanhar. Como aconteceu nos processos de Belo Horizonte, cabe a cada juiz analisar a existência ou não de uma relação trabalhista entre os prestadores de serviços e os donos dos aplicativos pelos quais vendem a mão de obra.

Para caracterizar esse famigerado vínculo, é crucial comprovar a subordinação. Ela pressupõe que o empregador dite como, quando e onde o empregado deve trabalhar. “Nessas empresas, o profissional tem liberdade de se cadastrar ou não, além de poder optar quando está disponível – o que vai contra o conceito atual para configurar a subordinação, pelo qual o patrão determina a quantidade de horas ou dias que alguém lhe presta serviço”, afirma o advogado trabalhista Aldo Martinez, do Souza Cescon, escritório que atende grandes corporações e que, na área de relações governamentais, tem a Uber entre seus clientes.

Quem discorda alega que as companhias de economia compartilhada realizam um controle mais sofisticado dos “parceiros” (o equivalente a funcionários nas organizações tradicionais). “Startups de compartiIhamento de carro, por exemplo, fiscalizam e orientam o motorista por meio do envio de e-mails que sugerem uma quantidade média de viagens ou atendimentos. Seria parecido com a relação que se estabelece entre empregadoras e vendedores externos ou propagandistas”, afirma o advogado trabalhista Ricardo Menezes, do escritório Kuster Machado. Para ele, o vínculo se configura mesmo que esses profissionais não se apresentem em um determinado local ou não tenham a jornada controlada.

Com medo de estabelecer essa ligação, o criador da Vaniday mudou seu modelo de negócios. A startup, lançada em 2014 para conectar clientes prestadores de serviços de beleza, inicialmente cadastrava (no jargão desse mercado, significa contratar) apenas profissionais liberais em sua plataforma. Mas, ao receber um dinheiro da incubadora alemã Rocket Internet, veio um alerta. “A Rocket tinha uma empresa de empregadas domésticas que estava sofrendo bastante com processos trabalhistas, por isso os investidores nos aconselharam a contratar salões de beleza para evitar esse tipo de problema”, diz o fundador da Vaniday, Cristiano Soares.

Outro problema: a parceria com os autônomos prejudicava o bom andamento do negócio. “Muitos profissionais deixavam de ir aos agendamentos nos sábados, por exemplo, porque haviam saído na sexta-feira à noite”, afirma Soares. A solução como numa corporação tradicional, foi reduzir o quadro para melhorar o controle. A Vaniday, que chegou a ter 3   salões cadastrados, hoje funciona com 2 000 estabelecimentos (e nenhuma mão de obra avulsa). Em 2016, a plataforma cresceu mais de 200% em volume de negócios e atende hoje 37 000 pessoas.

Como em qualquer empreendimento, a qualidade do serviço entregue depende dos profissionais. Mas, na economia compartilhada, isso dobra de importância, uma vez que essas instituições sobrevivem à base das avaliações dos usuários e da reputação no mercado. “A empresa pode até oferecer treinamentos, mas a própria tecnologia cria mecanismos para incentivar esses trabalhadores a prestar um bom trabalho”, diz o consultor de gestão José Augusto Minarelli, da consultoria que leva seu nome. Se o indivíduo tem avaliações baixas, ele deixará de ser contratado, acabará saindo da plataforma e, por fim, perderá esse dinheiro extra. Nessa relação, cujo papel do líder de recursos humanos foi substituído pelo do chefe de relacionamento, o retorno financeiro é o fator de engajamento.

Se o comportamento (e o comprometimento) do profissional afeta diretamente a qualidade do serviço, imagine a dimensão disso quando o que está em jogo é cuidar dos filhos dos outros. Foi pensando nisso que a ex-diretora de recursos humanos Luciana Pereira desenvolveu um processo de seleção tão ou mais rigoroso do que o de grandes corporações para sua startup Click Babá – aplicativo para contratar cuidadoras de criança. Como eu e meu marido criamos a empresa por não encontrar profissionais qualificadas para ficar com nossos filhos por pouco tempo, focamos um recrutamento bem completo”, afirma Luciana. São três etapas: a primeira é uma análise cadastral da formação acadêmica das candidatas (são permitidas apenas educadoras ou enfermeiras), da experiência e das referências; a segunda é um teste de aptidão online; e, por último, uma entrevista por vídeo. Se aprovadas, as babás ainda enfrentam um treinamento situacional e outro comportamental, ambos com a própria Luciana. Em média, o processo dura 30 dias.

Outra exigência da Click Babá é que as profissionais tenham um trabalho em tempo integral e que os serviços gerados pelo aplicativo entrem como complemento da renda. Além de fugir das implicações trabalhistas, a medida reforça um discurso politicamente correto e atual: “Queremos que a profissional se mantenha ativa em sua vocação e que continue se qualificando. Quando alguma delas fica desempregada, tem seis meses para se recolocar – senão é descadastrada”, diz a fundadora. Atendendo na cidade de São Paulo, a Click Babá mantém 85 babás ativas.

A visão de dar oportunidade à mão de obra é compartilhda pela Posher, outra startup que intermedia serviços estéticos. Diferentemente da concorrente Vaniday, que arrasta as clientes aos salões de beleza cadastrados, a Posher leva manicures e cabeleireiras para atender funcionárias de grandes companhias, no horário de expediente. “Durante a semana, o movimento dos salões é baixo, já que a maioria das pessoas está trabalhando. Desse jeito, as manicures ficam ociosas. Com o aplicativo, elas têm oportunidade de otimizar o tempo e aumentar a renda”, afirma Julio Hirose, cofundador da Posher, que foi lançada no começo de 2016 e já conta com cerca de 250 profissionais.

Embora muitas dessas empresas tenham se popularizado com promessas quase utópicas (desde diminuir o trânsito das cidades até promover uma sociedade mais sustentável em detrimento da acumulação desenfreada de bens), o fato de não oferecerem contrapartida aos profissionais fez com que virassem alvo de críticas. Nos Estados Unidos, difundiu-se a ideia de elas serem “bicos oficiais”’ e, desse modo, ao mesmo tempo que oferece uma alternativa de renda extra também precarizam as relações de trabalho. “Essas companhias se eximem de qualquer responsabilidade. Os funcionários têm de arcar com todas as despesas da atividade que exercem e não contam com nenhum apoio”, afirma Ricardo Meneses, do Küster Machado. Ele cita o exemplo da Uber, na qual o motorista gasta toda gasolina, alimentação e balinhas para os passageiros, além do custo da depreciação do carro. “No auge do desemprego, pode ser uma oportunidade. Mas, até perceber que está perdendo o dinheiro, a pessoa já investiu um tempo”, diz o advogado

Para não seguir o mesmo caminho da Uber – que vem recebendo críticas de motoristas e de perda de qualidade dos serviços -, algumas startups passaram a oferecer mais vantagens a seus parceiros. É o caso da Cargo X, plataforma que intermedia serviços de transporte de cargas. Criado em 2016, o aplicativo conta com 250 000 caminhoneiros cadastrados e atende companhias como Ambev, WhirlPool e Nestlé. ”A gente já oferece desconto em combustível e facilidade de financiamento de veículos. Agora estudamos a possibilidade de dar um plano de saúde aos motoristas”, diz Reinaldo Menegazzi, líder de relacionamento da empresa e responsável pela gestão dessa mão de obra. A ideia é oferecer uma gama de benefícios que os caminhoneiros não conseguiriam sozinhos.

A Easy Taxi também se preocupa em assegurar que o negócio continue vantajoso para os 140 000 taxistas cadastrados e procura ouvi-los antes de mudanças estratégicas, corno alterações de preço. Foi assim quando lançou, em junho de 2016, uma modalidade de corrida 30% mais barata, a Economy. “A equação de tarifas entre táxis e carros particulares estava desequilibrada, e isso fez com que perdêssemos mercado. Por essa razão, negociamos com os taxistas cadastrados na nossa plataforma para lançar uma modalidade popular e, assim, competir com os aplicativos de caronas”, afirma Fernando Matias, presidente da Easy Taxi. Agora os motoristas podem optar por aceitar ou não as corridas com desconto. Essa atenção com a outra ponta é importante, sobretudo porque o debate sobre a responsabilidade social corporativa tem ganhado força. “As pessoas estão ficando mais conscientes e passam a ver essas empresas como oportunistas. Nesse contexto, muitos usuários desses serviços questionam a si mesmos: “Eu sei que esse modelo é predatório, quero fazer parte disso?”, afirma Neusa, da ESPM.

Para o professor Wilson Amorim, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, é preciso lembrar que essas startups são capitalistas – sem nenhum romantismo. “Ainda existe alguém que seja dono do empreendimento, tenha mais capital e, por isso, leve vantagem em relação aos outros indivíduos da cadeia. Embora o empresário chame esses trabalhadores de parceiros, geralmente, eles não opinam no negócio, mas subordinam-se às suas ordens”, diz Amorim. “Com a taxa altíssima de desemprego como a que estamos vivendo, a capacidade de escolha real do profissional diminui, pois ele precisa pagar as contas”.

Enquanto não houver uma legislação que defina as regras do jogo, duas coisas são certas. Uma é que empresas, trabalhadores e clientes continuarão desprotegidos. O desafio nessa ponta será encontrar uma regulamentação que não limite nem emperre a inovação. Até agora, a alternativa mais plausível parece ser a de criar uma terceira categoria de empregados (a dos trabalhadores por aplicativos), que poderiam ou não ter direitos mínimos garantidos. O que nos leva à segunda certeza: a vida dos profissionais de recursos humanos tende a ficar mais complexa.

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