OS DESAFIOS DA SOCIEDADE SECULAR
Uma das coisas que a igreja mais necessita hoje é ter uma consciência sensível para o mundo que nos cerca. Se somos de fato servos de Jesus Cristo, nossos olhos (à semelhança dos olhos de Jesus) precisam estar sempre abertos para a necessidade humana e os nossos ouvidos atentos aos gritos de angústia. Assim, tal como Jesus, poderemos reagir de maneira construtiva e compassiva diante do sofrimento do povo.
Isto não significa que em todas as circunstâncias nós vamos “deixar que o mundo estabeleça a agenda para a igreja”, como se costumava dizer nos anos 60, ou que saiamos trotando que nem um cachorrinho no calcanhar do mundo. Comportar-se de tal forma seria confundir serviço (que é o nosso chamado) com servilismo (que não é o nosso chamado), e interpretar sensibilidade (que é uma virtude) em termos de conformidade (que é um vício). Pelo contrário: primeiro e acima de tudo, precisamos declarar e fazer aquilo que Deus nos enviou a declarar e fazer. Não podemos nos curvar servilmente diante do mundo.
Ao mesmo tempo, se não ouvirmos atentamente as vozes da sociedade secular, tentando compreendê-las e ser sensíveis às frustrações, à ira, confusão e desespero das pessoas, chorando com os que choram, não haverá em nós autenticidade como discípulos de Jesus de Nazaré. Pelo contrário, estaremos, como se diz por aí, correndo o risco de responder perguntas que ninguém está fazendo, coçar onde não há coceira alguma, prover bens para os quais não há nenhuma demanda… Em outras palavras, corremos o risco de ser totalmente irrelevantes — o que, aliás, a igreja tem feito muitas vezes no decorrer da sua história.
Neste capítulo eu gostaria de colocar diante de vocês a tríplice busca dos homens e mulheres modernos e secularizados. Na verdade, trata-se da tríplice aspiração universal do ser humano, aspiração que o próprio Jesus Cristo faz nascer dentro das pessoas, que somente ele pode satisfazer e que desafia a igreja a apresentá-lo ao mundo em sua plenitude.
A BUSCA POR TRANSCENDÊNCIA
Até muito recentemente, “transcendência” era uma palavra um tanto obscura e seu uso era limitado às instituições de ensino teológico. Ali os alunos aprendiam a distinguir entre “transcendência” (cujo sentido era Deus acima e fora do mundo criado) e “imanência” (isto é, Deus presente e ativo dentro deste). Hoje em dia, no entanto, quase todo mundo tem alguma ideia do que é transcendência, pois, com a mania da “meditação transcendental”, passou a ser um termo popular. A busca por transcendência é, portanto, a busca pela realidade suprema, que se encontra além do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é, contra a tentativa de eliminar Deus do seu próprio mundo. É um reconhecimento de que os seres humanos “não vivem só de pão”, pois o materialismo não pode satisfazer o espírito humano. Vejamos alguns exemplos da corrente desilusão com o secularismo e da insistente busca por transcendência.
Primeiro, temos o recente colapso do euromarxismo. Eu não estou falando do socialismo como uma ideologia político-econômica, mas de um marxismo clássico, como uma filosofia que nega a existência de Deus. Originalmente, o marxismo surgiu como um substituto para a fé religiosa ultrapassada. Mas os convertidos foram poucos e raros. Como escreveu Canon Trevor Beeson acerca da Europa Ocidental nos anos 70, “as doutrinas básicas do comunismo não convenceram as mentes nem satisfizeram as emoções da intelligentsia nem do proletariado. Já a vida religiosa tem demonstrado considerável elasticidade e, longe de desaparecer, tem encontrado, em muitas circunstâncias, nova força e vitalidade.” Solzhenitsyn disse algo similar em 1983, referindo-se especificamente à União Soviética. Ele chamou atenção para uma coisa que os líderes soviéticos não esperavam:
Numa terra em que as igrejas foram demolidas, onde um ateísmo vitorioso tem se espalhado descontroladamente durante dois terços de século, onde o clero tem sido extremamente humilhado e privado de qualquer independência, onde o que resta da igreja como instituição só é tolerado por amor à propaganda voltada para o Ocidente, onde ainda hoje se mandam pessoas para campos de concentração por causa de sua fé, e onde, dentro desses mesmos campos, aqueles que se reúnem para orar na Páscoa são punidos com a clausura — eles (sc. os líderes soviéticos) nunca iriam imaginar que, debaixo desse rolo compressor comunista, a tradição cristã pudesse sobreviver na Rússia! Mas ainda restam muitos milhões de crentes; só que as pressões externas não deixam que eles se manifestem.
A segunda esfera em que se nota que as pessoas estão desiludidas com o secularismo é o deserto do materialismo ocidental. O secularismo, em sua expressão capitalista, assim como na sua expressão comunista, não consegue mais satisfazer o espírito humano. Theodore Roszak é um eloquente expoente americano desse referido vazio. O seu livro Onde Termina o Deserto (Where the Wasteland Ends) tem um subtítulo muito significativo: Política e Transcendência em uma Sociedade Pós-Industrial. Roszak lamenta o que ele chama de “coca-colonização do mundo”. Segundo ele, nós estamos sofrendo de uma “claustrofobia psíquica dentro da cosmovisão científica”, na qual o espírito humano não consegue respirar. Ele ataca a ciência (pseudociência, acho que é o que ele quer dizer) por sua arrogância em declarar que é capaz de explicar todas as coisas, como também seu espírito de desilusão”, sua capacidade de “desfazer os mistérios”. “Afinal de contas, o que a ciência consegue medir é apenas uma parcela daquilo que o homem pode conhecer.” Este mundo materialista da ciência objetiva, continua ele, nem chega a ser “espaçoso o suficiente” para nós. Sem transcendência “as pessoas murcham”. A proposta de Roszak (o resgate da “imaginação visionária” de Blake) é terrivelmente inadequada; mas seu diagnóstico certamente acertou o alvo. Lá no íntimo, os seres humanos sabem que a realidade não pode ser confinada a um tubo de ensaio, nem esfregada em uma lâmina para ser examinada num microscópio, nem compreendida através da objetividade fria do método científico. Afinal de contas, a vida tem uma dimensão transcendental e a realidade é “assustadoramente vasta”. Em terceiro lugar, a busca por transcendência é vista na epidemia do abuso de drogas. Existem, naturalmente, muitas e diferentes interpretações sobre este fenômeno quase mundial. Ele não é uma experimentação puramente inocente, nem sempre é um protesto autoconsciente contra os costumes convencionais e nem tampouco é uma tentativa de escapar às duras realidades da vida. Mais do que isso, ele é uma genuína busca por uma “consciência mais elevada” e até mesmo por uma realidade transcendental objetiva. Uma prova disso seria Carlos Castaheda, cujos livros foram extremamente populares no final da década de 60 e na primeira metade da década de 70. Ele dizia ter sido iniciado por um índio yaqui do México, chamado Don Juan. Este lhe ensinara que existem dois mundos de igual realidade: o mundo “comum”, dos seres humanos vivos, e o mundo “incomum”, dos diableros ou feiticeiros. “O que se precisa descobrir exatamente é como atingir a brecha existente entre os mundos e como penetrar no outro mundo… Existe um lugar onde os dois mundos se sobrepõem. Ali é que é a brecha. Ela se abre e fecha como uma porta ao vento.” Quem penetra no outro mundo, o da realidade incomum, é o “homem do conhecimento”; para este é essencial ter um “aliado”, ou seja, “uma força capaz de transportá-lo para além dos limites de si mesmo”. E os dois principais aliados seriam a datura, também chamada de “erva de Jimson” ou “erva do diabo”, que é o aliado feminino e confere poder, e um cogumelo chamado humito ou “fumacinha”, que é o aliado masculino e produz êxtase. A primeira era bebida ou então absorvida através da pele, e este último, fumado. Os resultados eram a “divinização”, a fuga ou ausência do corpo, a adoção de corpos alternativos e até penetrar em objetos ou mover-se através deles.
O quarto exemplo dessa busca por transcendência é a proliferação dos cultos religiosos. Juntamente com o reaparecimento de antigas crenças e o fascínio da juventude ocidental pelo misticismo oriental tem-se verificado a emergência de novas religiões. Na Inglaterra já apareceram pelo menos oitocentas desde a Segunda Guerra Mundial, e Alvin Toffler calcula que, nos Estados Unidos, mil novos cultos já conquistaram cerca de três milhões de adeptos. Um dos mais alarmantes foi o movimento do Templo do Povo, em San Francisco, encabeçado por Jim Jones; dentre os seus seguidores, quase mil morreram em “Jonestown”, sua colónia localizada nas selvas da Guiana, em 1978, a maioria em um suicídio coletivo, por ingestão de veneno.
Um dos principais artigos do The Economist advertiu que “começou uma busca cega por novas formas de experiências espirituais”, e acrescentou: “Nessa busca de Deus, é muito fácil acabar caindo nos braços de Satanás, ao invés de Deus.” O sociólogo Peter Berger dá uma explicação similar: “A atual onda de ocultismo (inclusive o seu componente diabólico) deve ser entendida como resultado de uma repressão da transcendência na consciência moderna.”
O que mais surpreende entre todas as tendências religiosas é o surgimento do movimento da Nova Era. Trata-se de uma bizarra seleção de diversas crenças, mistura de religião e ciência, física e metafísica, panteísmo antigo e otimismo evolucionista, astrologia, espiritismo, reencarnação ecologia e medicina alternativa. Um dos líderes do movimento, David Spangler, escreve em seu livro Emergência: O Renascimento do Sagrado (Emergence: The Rebirth of the Sacred) que “desde muito jovem” ele mesmo já tinha “consciência de uma dimensão superior” ao mundo que o cercava e que ele, à medida que ia ficando mais velho, veio a identificá-la como “uma dimensão sagrada ou transcendental”. “A essência da Nova Era é o renascimento do senso do sagrado”, acrescenta ele.
Eis aqui, portanto, quatro provas contemporâneas de que o materialismo não satisfaz o espírito humano e de que, em virtude disso, as pessoas andam à procura de uma outra realidade transcendental. Elas a procuram em qualquer lugar: na ioga, na meditação transcendental e nas religiões orientais, no sexo (que Malcolm Muggeridge costumava chamar de “o misticismo dos materialistas”), na música e em outras artes, bem como através de uma consciência mais elevada e induzida pelas drogas, através de cultos modernos e especulações da Nova Era, de perigosos experimentos com o oculto e das fantasias da ficção científica.
A primeira reação dos cristãos diante deste complexo fenômeno deveria ser de simpatia. Afinal de contas, nós certamente entendemos o que está se passando, e por quê. Usando as palavras do apóstolo Paulo diante dos filósofos atenienses, homens e mulheres estão “tateando à procura de Deus”, como cegos no escuro, andando às apalpadelas à procura de seu Criador, que os deixa sem descanso até que eles encontrem repouso em Deus. Eles estão manifestando a busca humana por transcendência. Um exemplo contemporâneo disso foi dado por Richard North, correspondente do meio ambiente do periódico The Independent:
É impressionante, quantos sentem necessidade de adorar alguma coisa. Mas, para podermos adorar, precisamos encontrar alguma coisa fora de nós — e melhor do que nós. Para isso é que Deus foi inventado. E a natureza também. Todos nós estamos nos apaixonando pelo meio ambiente como um substituto de Deus e em consequência de nos havermos afastado dele.
Essa busca por transcendência é um desafio à qualidade de adoração que nós, como igreja, vivemos em nossos cultos públicos. Será que ela oferece o que as pessoas desejam — o elemento do mistério, o “senso do divino”, “o temor de Deus”, em linguagem bíblica, ou a “transcendência”, em linguagem moderna? A resposta que eu dou à minha própria pergunta é: “Nem sempre”. A igreja nem sempre é conhecida pela realidade profunda de sua adoração. De maneira especial, nós, os que nos denominamos “evangelicais”, não sabemos bem como adorar. Nossa especialidade é evangelizar — mas adorar, não. Parece que não temos muita consciência da grandeza e da glória de Deus. Nós não sabemos prostrar-nos diante dele em temor e admiração. Não nos damos muito ao trabalho de preparar os nossos cultos de adoração. Estes às vezes são tão mecânicos, superficiais, medíocres, sem graça! Outras vezes são frívolos a ponto de serem irreverentes. Não é de admirar que quem procura a Realidade geralmente passe por nós sem nem perceber!
Nós temos que ouvir novamente as críticas que a Bíblia faz à religião. Nenhum livro, nem mesmo os de Marx e de seus seguidores, acusa tanto a religiosidade vazia como a Bíblia. Os profetas dos séculos VII e VIII antes de Cristo denunciaram com toda franqueza a formalidade e a hipocrisia dos cultos israelitas. E depois Jesus aplicou a crítica dos profetas aos fariseus de seus dias: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.” E esta acusação, tanto da parte dos profetas como de Jesus, com relação à religiosidade aplica-se perfeitamente a nós e a nossas igrejas, hoje. Nossos cultos são, em grande parte, ritual sem realidade, forma sem poder, diversão sem temor, religião sem Deus.
Mas, então, o que é necessário? Aqui vão algumas sugestões. Primeiro, a Palavra de Deus precisa ser lida e anunciada com tanta fidedignidade que através dela se faça ouvir a voz de Deus, viva, falando ao seu povo novamente. Segundo, a Ceia do Senhor precisa ser administrada com tanta reverência e expectativa que (e aqui eu escolho minhas palavras com muito cuidado) se verifique uma Presença Real de Jesus Cristo, não nos elementos da Ceia, mas entre o seu povo que está à sua mesa, o próprio Jesus Cristo, objetiva e realmente presente, vindo ao nosso encontro, pronto a fazer-se conhecido por nós no partir do pão e ansioso para entregar-se a nós, de forma que possamos alimentar-nos dele em nossos corações pela fé. Em terceiro lugar, necessitamos uma atitude de sincero louvor e oração, para que o povo de Deus possa dizer como Jacó: “Na verdade o Senhor está neste lugar; e eu não o sabia”, e para que os descrentes ali presentes caiam de joelhos, adorando a Deus e exclamando: “Deus está de fato no meio de vós!”
Enfim, é profundamente lamentável que homens e mulheres modernos, em sua busca por transcendência, voltem-se para as drogas, o sexo, a ioga, as seitas, o misticismo, a Nova Era e a ficção científica, ao invés de procurarem a igreja, em cujos cultos de adoração sempre se deveria experimentar a verdadeira transcendência e desfrutar um encontro íntimo com o Deus vivo.
A BUSCA POR SIGNIFICÂNCIA
Existe, no mundo moderno, muita coisa que, além de sufocar o nosso senso de transcendência, reduz também (quando não destrói) o nosso senso de significância pessoal, nossa convicção de que a vida tem algum sentido. Quero mencionar três dessas tendências.
A primeira é o efeito da tecnologia. A tecnologia pode ser libertadora, evidentemente, quando contribui para livrar as pessoas da enfadonha lida doméstica ou industrial. Mas ela pode ser também terrivelmente desumanizante, quando leva homens e mulheres a sentirem que já não são mais pessoas, mas coisas, “identificadas, não por um ‘nome próprio’, mas por um número de série perfurado em um cartão que foi desenvolvido para viajar pelas entranhas de um computador”.
Em segundo lugar, vem o reducionismo científico. Certos cientistas, de diferentes disciplinas, afirmam que o ser humano não passa de um animal (o “macaco despido” de Desmond Morris, para ser mais preciso), ou nada mais é que uma máquina, programada para produzir respostas automáticas diante de estímulos externos. Foram declarações como estas que levaram o falecido professor Donald MacKay a popularizar a expressão inglesa nothing buttery (literalmente: “nada mais que”, nothing but) para explicar a expressão “reducionismo”, bem como a protestar contra qualquer tendência de reduzir os seres humanos a níveis mais baixos que o plenamente pessoal.
Na verdade, nosso cérebro é uma máquina, um mecanismo altamente complexo. E nossa anatomia e fisiologia Hão iguais às de um animal. Mas isto não é uma definição completa do que é um ser humano. Nós somos mais do que corpo e cérebro. E quando as pessoas afirmam que nós não somos “nada mais que” isto ou aquilo, que elas estão cometendo um sério e perigoso engano.
Em terceiro lugar, o existencialismo tem o efeito de diminuir o senso de significância das pessoas. Pode-se dizer que os existencialistas radicais diferem dos humanistas em geral por seu propósito de levar a sério o seu ateísmo, encarando as suas terríveis consequências. Já que (na opinião deles) Deus está morto, tudo o mais morreu com ele. Já que Deus não existe, também não existem valores nem ideais, nem leis nem padrões, propósitos nem significados. E, embora eu exista, mesmo assim não existe coisa alguma que dê significado a mim ou à minha existência, a não ser, talvez, a minha decisão de buscar a coragem de ser. Só posso encontrar significado na vida desdenhando a minha própria insignificância. Não há outro meio de autenticar a mim mesmo.
Por mais tristemente heroica que esta filosofia possa parecer, deve haver bem poucas pessoas capazes de realizar a mágica de pretender ter significância quando elas sabem que não a têm. Afinal, significância é essencial para a sobrevivência. Foi isso que Viktor Frankl descobriu quando, ainda jovem, passou três anos no campo de concentração de Auschwitz. Ele notou que os internos que mais probabilidade tinham de sobreviver eram aqueles “que sabiam que havia para eles uma tarefa a realizar”. Posteriormente, ele veio a ser professor de Psiquiatria e Neurologia na Universidade de Viena e fundou a “Terceira Escola Vienense de Psiquiatria”. Seu postulado era que, além do “desejo de prazer” de Freud, e o “desejo de poder” de Adler, os seres humanos têm um “desejo de significado”. Com efeito, “a luta para encontrar um significado na vida é a força motivadora primordial de uma pessoa”. Assim, ele desenvolveu aquilo que ele chamou de “logoterapia”, usando logos para significar, não “palavra” nem “razão”, mas “significado”. “A neurose massiva do tempo presente”, escreveu ele, “é o vazio existencial”, isto é, a perda do senso de que a vida tem significado. Às vezes ele perguntava aos seus clientes: “Por que você não comete suicídio?” (aliás, uma pergunta um tanto estranha para um médico fazer a um paciente!). Eles replicavam que havia alguma coisa (quem sabe o seu trabalho, o casamento ou a família) que fazia a vida valer a pena para eles. E sobre isto Frankl se baseava para trabalhar com eles.
A falta de sentido leva à monotonia, ao alcoolismo, à delinquência juvenil e ao suicídio. Comentando sobre a obra de Viktor Frankl, Arthur Koestler escreveu:
Existe no homem uma tendência inerente para sair à procura de significados para preencher e de valores para realizar… Milhares e milhares de jovens estudantes vivem expostos a uma doutrinação… que nega a existência de valores. O resultado disso é um fenômeno que vem se espalhando pelo mundo todo — mais e mais pacientes se acotovelam em nossas clínicas queixando-se de um vazio interior, de uma total e extrema falta de significado na vida.
Conforme Emile Durkheim, em seu clássico estudo sobre o suicídio, o maior número de suicídios é causado pela anomia, que poderia ser considerada a “falta de normas” ou “falta de significado”. E o suicídio “anômico” ocorre quando uma pessoa, ou não tem objetivo algum na vida, ou então persegue um objetivo inatingível, seja ele poder, sucesso ou prestígio. “Nenhum ser humano pode ser feliz ou mesmo existir, a não ser que suas necessidades sejam suficientemente proporcionais aos seus meios.”
Se a busca por transcendência foi um desafio para a qualidade de adoração da igreja, a busca por significância é um desafio à qualidade de ensino da igreja. Milhões de pessoas não sabem quem elas são, nem que elas têm algum significado ou valor. Daí o nosso urgente desafio: dizer-lhes quem elas são, esclarecer-lhes acerca da sua identidade, isto é, ensinar-lhes, sem nenhum compromisso, toda a doutrina bíblica referente a nossa condição de humanos: corrupção, sim, mas também (e, acima de tudo, neste contexto) dignidade.
Como cristãos, nós acreditamos no valor intrínseco dos seres humanos, em virtude de nossas doutrinas da criação e da redenção. Como vimos no capítulo 1, Deus nos criou homem e mulher à sua própria imagem e nos fez mordomos responsáveis por cuidar da terra e de suas criaturas. Ele aos dotou de faculdades racionais, morais, sociais, criativas e espirituais, que fazem de nós seres iguais a ele e diferentes dos animais. Os seres humanos são semelhantes a Deus. É verdade que, em consequência da queda, nossa semelhança com Deus foi corrompida, mas não destruída. Além disso, “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho” para a nossa redenção. A cruz é a maior evidência pública do valor que Deus nos dá.
O ensinamento cristão sobre a dignidade e o valor do ser humano é de suma importância hoje, não só por amor à nossa própria autoimagem, mas ainda mais para o bem-estar da sociedade.
Quando os seres humanos são desvalorizados, tudo o mais na sociedade se estraga. As mulheres são humilhadas e as crianças desprezadas. Os enfermos são considerados um incómodo e os idosos um fardo. As minorias étnicas são discriminadas. Os pobres são oprimidos e lhes é negada justiça social. O capitalismo põe à mostra seu lado mais desprezível. O trabalho é explorado nas minas e nas fábricas. Os criminosos são brutalizados na prisão. Opiniões contrárias se polarizam. Belsen é inventado pela extrema direita e Gulag pela extrema esquerda. Os descrentes ficam à deriva, para viver e morrer em sua perdição. Não há liberdade, nem dignidade, nem prazer e alegria. A vida humana já não merece ser vivida, pois chegou a tal ponto que mal pode ser considerada humana.
Mas quando os seres humanos são valorizados como pessoas, em virtude de seu valor intrínseco, tudo muda. Homens, mulheres e crianças são honrados. Os enfermos são cuidados e os idosos capacitados a viver e morrer com dignidade. Os dissidentes são ouvidos, os prisioneiros reabilitados, as minorias protegidas e os oprimidos libertados. Os trabalhadores recebem salário digno, condições de trabalho decentes e uma parcela de participação, tanto na gerência como nos lucros da empresa. E o evangelho é levado até os confins da terra. E por que isso? Porque as pessoas importam. Porque todo homem, mulher e criança tem valor e significado como ser humano criado à imagem e semelhança de Deus.
A BUSCA DE COMUNHÃO
A moderna sociedade tecnocrata, que destrói a transcendência e a significância, destrói também a comunhão. Nós vivemos em uma era de desintegração social. As pessoas acham incrivelmente difícil relacionar-se umas com as outras. Assim, nós continuamos perseguindo exatamente aquilo que foge de nós — amor em um mundo sem amor. Quero chamar como testemunhas três pessoas completamente diferentes.
A primeira é Madre Teresa. Nascida na Iugoslávia, ela partiu para a Índia quando tinha apenas 17 anos de idade. Então, após cerca de vinte anos ensinando, ela desistiu da sua profissão a fim de servir aos mais pobres dentre os pobres de Calcutá. No mesmo ano (1948), tornou-se cidadã indiana, e dois anos mais tarde fundou a sua nova ordem, a dos “Missionários de Caridade”. Assim a Índia foi seu lar por mais de sessenta anos. Portanto, sua voz e sua visão são uma autêntica voz e visão do Terceiro Mundo. Eis o que ela escreveu sobre o Ocidente:
Hoje as pessoas vivem sedentas de amor e de compreensão, que é… a única resposta para a solidão e a enorme pobreza. E por isso que nós (sc. as irmãs e os irmãos de sua ordem) podemos ir a países como a Inglaterra, América e Austrália, onde não existe fome de pão. Existe, porém, gente sofrendo de solidão, terrível desespero, um ódio terrível, sentindo-se indesejadas, inúteis e sem esperança. Essas pessoas esqueceram o que é sorrir, esqueceram a beleza do toque humano. Estão esquecendo o que é o amor humano. Elas precisam de alguém que as compreenda e respeite.
Lembro-me de que, a primeira vez que li esta avaliação do mundo ocidental, eu fiquei um pouco indignado e a considerei um exagero. Mas de lá para cá eu mudei de opinião. Acho que ela é acurada, pelo menos como uma generalização.
Minha segunda testemunha é Bertrand Russell, o brilhante matemático e filósofo, e ateu descompromissado. Ele escreveu com emocionante candura no Prólogo da sua autobiografia:
Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, têm governado a minha vida: o anseio por amor, a busca de conhecimento e uma insuportável compaixão pelo sofrimento da humanidade. Estas paixões, como grandes ventos, têm me atirado para cá e para lá, em um curso sem destino, sobre um profundo oceano de angústia, atingindo as raias do desespero. Eu busquei amor, primeiro, porque ele produz êxtase… Procurei-o, depois, porque ele alivia a solidão — essa terrível solidão em que a fragmentada consciência da gente olha por sobre as margens do mundo para o frio e insondável abismo sem vida…
Depois vem Woody Allen, minha terceira testemunha. A maioria das pessoas só vê nele um comediante (aliás, ele já vendia suas piadas à imprensa quando ainda estava no colégio), mas “dentro do comediante existe um trágico”. Com todo o seu aclamado brilhantismo como escritor, diretor e ator, ele parece nunca ter encontrado, nem a si mesmo, nem a ninguém mais. Woody Allen descreve o ato de fazer amor como “dois psicopatas debaixo de uma coberta”. Em seu filme Manhattan (1979), ele satiriza as pessoas, dizendo que estas deveriam “acasalar-se para a vida toda, como os pombos e os católicos”; mas ele mesmo parece ser incapaz de seguir o seu preceito. Ele confessa que todos os seus filmes “tratam da maior de todas as dificuldades: as relações de amor. Todo mundo o encontra. Ou as pessoas estão apaixonadas, ou elas estão para se apaixonar, ou tentando livrar-se de um amor, ou procurando um meio de evitá-lo”. Ao fazer o seu retrato, seu biógrafo termina com estas palavras: “Ele vive lutando, assim como nós lutamos, para ter forças para encontrar uma vida baseada no amor. Como diz o personagem em Hannah e Suas Irmãs, ‘Quem sabe os poetas estejam certos. Talvez o amor seja a única resposta…’.”
Eis aqui três pessoas de contextos, convicções, temperamentos e experiências bem diferentes, que, no entanto, concordam uma com a outra no que concerne à incomparável importância do amor. Elas falam pela raça humana. Todos nós sabemos, lá dentro de nosso íntimo, que o amor é indispensável para a nossa humanidade. É isso que é a vida: ela é feita de amor.
Por isso as pessoas o buscam em toda parte. Pelo menos a partir dos anos 60, muita gente vem rompendo com o individualismo ocidental e experimentando estilos de vida comunitários. Outros tentam substituir o núcleo familiar (tradicional no Ocidente) pela grande família (que, durante séculos, tem sido a tradição na África e na Ásia). Outros, porém, resolveram repudiar a secular instituição do matrimônio e da família, numa tentativa (vã e tola, na opinião dos cristãos) de desta forma encontrar o caminho para a liberdade e a espontaneidade do amor. Todo mundo vive à procura de comunhão genuína e de relações de amor autênticas. A lírica do musical Aspectos do Amor, de Andrew Webber, diz tudo:
O amor, o amor muda tudo:
muda mãos e faces, muda terra e céu. O amor, o amor muda tudo:
como se vive e também como se morre. O amor faz o verão voar
ou uma noite parecer uma vida inteira. Sim, o amor, o amor muda tudo;
hoje eu tremo ao escutar seu nome. Nada no mundo será mais igual.
O amor, o amor muda tudo:
os dias são mais longos, palavras sem sentido. O amor, o amor muda tudo:
a dor é mais profunda do que antes já foi. É nosso amor que faz girar o mundo
e esse mundo há de durar para sempre. O amor, o amor muda mudo,
traz-nos glória e nos traz vergonha. Nada no mundo será mais igual.
O terceiro desafio do mundo, portanto, tem a ver com a qualidade da comunhão da igreja. Nós anunciamos que Deus é amor e que Jesus Cristo oferece verdadeira comunhão. Dizemos que a igreja faz parte do evangelho. Declaramos que o propósito de Deus não é meramente salvar indivíduos isolados, perpetuando assim a sua solidão, mas é construir uma igreja, criar uma nova sociedade e até uma nova humanidade, em que serão abolidas as barreiras raciais, sexuais, nacionais e sociais. E esta nova comunidade de Jesus tem a ousadia de apresentar-se como a verdadeira sociedade alternativa, que ofusca os valores e os padrões do mundo.
Esta é uma afirmação que fala muito alto. O trágico, porém, é que a igreja sempre deixa de viver de acordo com esses novos ideais. Sua compreensão teológica acerca do seu chamado pode ser impecável. Mas, comparativamente falando, existe pouca aceitação, pouco cuidado e pouco amor e apoio mútuo entre nós. Em nossas igrejas deveria estar chovendo gente em busca de comunhão, especialmente se elas oferecem experiência de grupos pequenos. Mas, ao invés disso, o que acontece muitas vezes é que a igreja é justamente o lugar que eles nem se dão ao trabalho de procurar, tão certos estão de que ali não acharão amor.
Mel White, escritor e cineasta cristão, resolveu investigar as causas do trágico suicídio em massa ocorrido em Jonestown, nas selvas da Guiana, em 1978, e publicou as suas descobertas em um livro e num filme intitulados Deceived (Enganados). “Como é que isso aconteceu?”, perguntou ele. “O que podemos fazer para evitar que aconteça novamente?” Falando tanto com desertores como com sobreviventes, ele descobriu, para sua surpresa, que “as vítimas de Jones vinham de nossas igrejas” (título do primeiro capítulo de seu livro), onde não haviam encontrado amor. Jean Mills, por exemplo, que desertou depois de sete anos, disse: “Eu fui mandado embora um monte de vezes, de cada igreja que eu procurava, porque ninguém se importava comigo.” E Grace Stoen, cujo marido, Tim, que era advogado, havia se tornado o segundo homem mais poderoso no Templo do Povo em San Francisco, disse: “Eu frequentei a igreja até completar dezoito anos… e nunca ninguém fez amizade comigo.” No Templo do Povo, porém, de acordo com Jean Mills, “todo mundo parecia tão amoroso e atencioso. Eles nos abraçavam e nos faziam sentir-nos bem-vindos… e diziam que… queriam que voltássemos.” Foi esta descoberta que levou Mel White a apresentar, no último capítulo de seu livro, intitulado “Não Deve Acontecer de Novo”, oito resoluções. Esta foi a primeira: “Farei o melhor possível para ajudar a fazer de minha igreja uma comunidade mais atenciosa para com os seus membros e os estranhos em nosso meio.”
Seria injusto, porém, ver apenas as coisas negativas ao se avaliar a igreja contemporânea. Afinal existem, pelo mundo todo, comunidades cristãs em que se encontra amor verdadeiro, sacrificial, atencioso e apoio mútuo. Onde quer que floresça esse tipo de amor, seu magnetismo é quase irresistível, como bem expressa Stephen Neill:
Na comunidade daqueles que são unidos por uma lealdade pessoal a Jesus Cristo, a relação de amor atinge uma intimidade tão intensa que não se conhece em qualquer outro lugar. A amizade entre os amigos de Jesus de Nazaré não tem paralelo em nenhuma outra amizade. Esta deveria ser uma experiência normal dentro da comunidade cristã… O fato de isto ser tão raro nas comunidades cristãs é uma manifestação do fracasso da igreja em geral em viver de acordo com o propósito de seu Fundador para ela. Onde quer que se experimente essa amizade, especialmente ultrapassando barreiras de raça, nacionalidade e língua, isto é uma das evidências mais convincentes da constante atuação de Jesus entre os homens.
Aqui está, pois, a tríplice busca em que estão engajados os seres humanos. Embora eles provavelmente não a articulem desta forma, acho que podemos dizer que, ao buscarem transcendência, eles estão tentando encontrar a Deus; ao buscarem um significado na vida, estão tentando encontrar a si mesmos; e, ao buscarem uma comunidade, estão tentando encontrar o próximo. E é nisto que consiste a busca universal da humanidade: por Deus, pelo próximo e por nós mesmos.
Além disso, como diz a afirmação cristã (confiante eu sei, humilde eu espero) é que quem busca, acha — em Cristo e em sua nova sociedade. A meu ver, a busca contemporânea deste século é um dos maiores desafios (e oportunidades) com os quais a igreja jamais se defrontou: as pessoas procuram abertamente justo aquilo que Jesus Cristo oferece!
A única questão é se a igreja pode ser tão profundamente renovada pelo Espírito e pela Palavra de Deus que ela ofereça uma experiência de transcendência através da sua adoração, de significância através do seu ensino e de uma comunidade através de sua comunhão. Pois, se isto acontecer, as pessoas se voltarão ansiosamente para ela em sua busca, e nossa proclamação das boas novas terá uma credibilidade que, de outra forma, sempre nos faltará.
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