
PSICOTERAPIAS CORPORAIS
Com o intuito de ajudar a lidar com os conflitos psíquicos e apaziguar o sofrimento emocional, várias abordagens psicológicas recorrem a intervenções somáticas, usando técnicas especificas como leitura corporal, toques, exercícios de respiração e expressão. O trabalho do austríaco Wilhelm Reich, que começou sua carreira como um integrante da psicanálise, trouxe grande contribuição para essa área clínica.
Psicoterapia corporal é o nome que se popularizou para designar um conjunto de práticas psicoterapêuticas que tendem a incluir entre suas atividades a observação do corpo, os trabalhos com a respiração, os exercícios expressivos, os toques e as massagens, entre outros. Como a maior parte das escolas de psicoterapia se baseia fundamentalmente no intercâmbio verbal, na fala, a criação de um nome específico para esse tipo de abordagem é bastante apropriada. No entanto, a visão usual de que essa abordagem psicoterápica trabalhe exclusivamente com o corpo, desprezando a fala, não é verdadeira.
Uma analogia que pode ajudar a compreender essa forma psicoterapêutica é com a do piano: as teclas brancas representariam o trabalho verbal, a linguagem e a elaboração simbólica; já as pretas seriam os diversos recursos de intervenção corporal. O psicoterapeuta, portanto, comporia sua música usando as teclas brancas e pretas, conforme a necessidade de cada caso.
Há várias escolas de psicoterapia que utilizam intervenções somáticas, cada uma com suas especificidades, mas sem dúvida o autor mais importante nesse campo foi o austríaco Wilhelm Reich (1897-1957). Ele encantou-se com a psicanálise na época em que cursava medicina em Viena e veio a se tornar um psicanalista ativo, especialmente entre 1920 e 1934, tendo escrito artigos e livros sobre técnica terapêutica. Esse período marcou seu pensamento, e a psicoterapia corporal criada por ele contém muitos elementos em comum com as ideias de Freud.
O primeiro desses elementos tem a ver com o conceito de inconsciente, a parte da mente humana não acessível à consciência. Os transtornos psíquicos, as escolhas da vida amorosa e profissional, o gostar e o não gostar de determinada situação ou pessoa, tudo isso seria influenciado pelos conteúdos inconscientes. O processo de análise deve propiciar meios de trazer à luz da consciência aquilo que antes estava fora dela.
Entretanto, os pacientes, mobilizados por fatores inconscientes, com frequência dificultam esse processo de análise, opondo-se a ele de forma declarada ou dissimulada. É o que se denomina resistência – segundo elemento da psicanálise que teve grande influência na obra de Reich. Isso ocorre, por exemplo, quando nas sessões as pessoas chegam atrasadas ou faltam, ficam em silêncio ou não conseguem associar livremente, bem como não revelam sentimentos considerados negativos (como medo e desconfiança) em relação ao tratamento.
É algo muito curioso, pois o sujeito investe tempo e dinheiro para se cuidar, mas não colabora, aumentando o custo do processo e retardando-o. É como se fôssemos tratar de uma cárie e não abríssemos a boca, resultando que o dentista só pudesse trabalhar de fato durante alguns poucos minutos a cada sessão. Por isso, cabe ao psicoterapeuta estar atento para as diversas formas de resistência e procurar lidar com elas de maneira adequada.
A importância da sexualidade para a vida mental, um dos pilares do pensamento freudiano, foi outro elemento que influenciou Reich, para quem a entrega no encontro sexual satisfatório, orgástico, fundamental para a saúde, caminhava junto com a entrega às demais atividades da vida.
A questão da transferência analítica também se tornou parte da visão reichiana. Esse conceito retrata o fato observado na clínica de que o analisando “transfere” para o analista os sentimentos oriundos de suas relações infantis, sem se dar conta disso. Dessa forma, em diferentes momentos, podem surgir, por exemplo, tanta adoração pelo terapeuta quanto medo ou ressentimento no que se refere a ele – dinâmicas emocionais que pouco têm a ver com a sua relação atual com o analista. Isso tem grande importância para o tratamento, pois esses acontecimentos – se adequadamente trabalhados – possibilitam significativa via de acesso ao material inconsciente.
Reich chamou a atenção para um tipo especial de resistência, até então pouco estudada: do caráter ou caracterológica, oriunda do próprio jeito de ser do indivíduo. Para ele, a falha dos analistas em perceber esse fato tinha como consequência, em muitos casos, o fracasso do tratamento. Para lidar com isso, Reich criou uma série de orientações técnicas, que denominou Análise do caráter. Na sua visão, o conjunto dessas resistências caracterológicas acabava constituindo uma blindagem (Panzer, no original alemão) que defendia o ego da influência externa e das irrupções emocionais e manifestações pulsionais oriundas do próprio organismo. Isso resultaria numa verdadeira armadura ou couraça.
Deve-se chamar a atenção para o fato de que a técnica de análise do caráter não constitui uma ruptura com a psicanálise, muito pelo contrário. Na edição original de Análise do caráter (1933) – que abrange os 12 primeiros capítulos da edição atual -, Reich mostra-se um psicanalista que escreve para seus pares, expondo sua contribuição ao campo da técnica psicanalítica. Ele pretendia com isso proporcionar à psicanálise recursos para lidar com essa questão do caráter, ampliando assim seus horizontes técnicos e teóricos.
Seguem então, de forma resumida, algumas diretrizes fundamentais da técnica de análise do caráter. Veremos que ela implica algum as alterações em relação ao enfoque freudiano clássico.
Reich propôs prestar atenção às resistências latentes, ou seja, àquelas que não se manifestam de maneira declarada, e sim de forma indireta ou camuflada, ou mesmo ficam ocultas.
Por exemplo, o analisando pode esconder sentimentos de vergonha, medo, dúvida, ironia, desprezo, ceticismo ou desconfiança em relação à pessoa do analista. Apesar de encobertos, eles exercem um efeito danoso no tratamento na medida em que impedem a entrega do indivíduo ao processo. Desse modo, a pessoa fica como que “blindada”, ”encouraçada” e imune aos esforços do analista.
Reich aponta alguns quadros típicos de comportamento do analisando em psicoterapia nos quais é muito provável encontrar resistência oculta: (1) os que são sempre confiantes, contentes e trazem recorrentemente material abundante, sem nunca mostrar sentimentos negativos em relação ao terapeuta; (2) aqueles cujos afetos estão paralisados, que apresentam uma dissociação entre ideias e emoções; (3) os que se mostram sempre convencionais e corretos, bem-educados e formalmente corteses; (4) aqueles que se apresentam com falta de autenticidade de sentimentos, entre eles os que compulsivamente “representam” e sabem que estão enganando o analista, com “riso interior” diante de tudo e todos.
Como fazer para descobrir algo que está oculto? Aí entra uma segunda diretriz, que é prestar atenção à forma de agir. Na psicanálise tradicional, a ênfase recai na chamada “escuta analítica”, na atenção ao que o paciente fala. Já a análise do caráter enfoca também como ele fala, de que forma se comporta, de que modo olha ou se posiciona. Ou seja, passa a ter importância também o que poderíamos chamar de “olhar analítico”. É preciso ver os gestos, a aparência, as posturas. O corpo concreto volta à cena e precisa ser observado. Desabrocha um campo de estudos hoje denominado leitura corporal, como veremos adiante.
Prestando atenção à forma (e não apenas ao conteúdo), torna-se possível evidenciar as resistências que derivam do jeito de ser da pessoa, dos modos crônicos de agir, pensar e sentir que constituem aquilo que chamamos de caráter. Esse é o caminho mais direto para explicitar a resistência oculta, normalmente representada por alguns traços de caráter formados nos primeiros anos de vida.
Outro tópico em que esse tipo de análise aponta para um afastamento em relação à ortodoxia psicanalítica diz respeito à neutralidade analítica, ou seja, à visão de que o analista não deve privilegiar ou destacar qualquer aspecto das comunicações do analisando. Reich afirmava que tal atitude, diante de uma resistência caracterológica, pode ria levar o tratamento a um beco sem saída. Para ele, a regra de associação livre de ideias seria aplicável apenas quando não houvesse resistência importante dificultando o processo analítico. Quando esta estivesse presente, o analista deveria abandonar sua disposição habitual, substituindo-a por uma postura mais ativa até superar as resistências ao processo.
Reich propôs sua atitude mais diretiva como uma tática restrita a casos de resistência caracterológica, vendo-a como algo temporário. Ou seja, superada a resistência original, a proposta voltaria a ser de não dirigir o curso do tratamento e deixar o material analítico brotar espontaneamente. Como ele escreveu no livro Análise do caráter. “No período de resistência, recai sobre o analista a difícil tarefa de dirigir o andamento da análise. O paciente só tem comando nas fases livres de resistência”.
Apesar disso, infelizmente, ainda se encontram psicoterapeutas de orientação reichiana que, de forma mais realista do que o rei, entendem o processo terapêutico como algo a ser dirigido o tempo todo pelo analista quanto ao que dizer, fazer ou priorizar. A nosso ver, esse seria um desvio da técnica da análise do caráter.
Segundo Reich, cabe ao analista procurar discernir que traço de caráter constitui a resistência principal ao processo e proceder de maneira sistemática e consistente até dissolvê-la. Por análise sistemática, ele entende a atenção que deve ser dada à estratificação da neurose em camadas, partindo da mais superficial (e mais recentemente formada) em direção às mais profundas e antigas.
Um a análise consistente das resistências se faz quando o analista concentra seu foco no trabalho no traço de caráter definido como elemento essencial, não se deixando desviar dele por outras vicissitudes que surjam no decorrer do processo analítico.
Em suma, Reich propõe, portanto, um papel mais diretivo do analista ou psicoterapeuta, que escolhe priorizar a interpretação da resistência, que vai em busca das resistências ocultas que não fazem parte do material trazido pelo analisando, que dedica atenção a como o indivíduo fala e age, que prioriza uma camada da neurose em detrimento de outra (análise sistemática) e uma das formas de resistência entre as diversas que se apresentam no decorrer do processo (análise consistente).
INTERVENÇÕES N O CORPO
Em 1934, Reich deixa de fazer parte do movimento psicanalítico. O desenvolvimento de suas concepções o leva progressiva mente a criar uma forma de tratamento que inclui intervenções corporais. Exercícios, trabalhos com a respiração, toques físicos vão sendo agregados ao que ele tinha aprendido como psicanalista.
A base teórica dessa nova abordagem é a noção de que o corpo (em especial a musculatura) teria papel essencial no funcionamento psíquico. Freud havia suposto que o inconsciente dinâmico seria gerado por mecanismos de defesa do ego, dentre os quais destacou o recalque (traduzido por alguns como “repressão”). Segundo Reich, a rigidez (hipertonia) muscular seria o correlato som ático desse mecanismo. Essa concepção o levou a propor maneiras de modificar o tônus muscular como um recurso terapêutico de influência sobre o aparelho psíquico, facilitando o acesso ao material inconsciente. Ou seja, por meio de exercícios e toques corporais pode riam ser evocadas memórias e expressões emocionais, com grande proveito para o processo analítico.
Em um trabalho publicado originalmente em 1935, Contato psíquico e corrente vegetativa, e depois incorporado como capítulo 13 da nova edição de seu livro Análise do caráter, Reich afirma: “A dissolução de um espasmo muscular não só libera a energia vegetativa, mas, além disso e principalmente, reproduz a lembrança da situação de infância na qual ocorreu a repressão do instinto. Pode-se dizer que toda rigidez muscular contém a história e o significado de sua origem”.
Por que essa importância atribuída à musculatura? Do mesmo modo que a criança aprende a controlar as excreções tensionando os músculos dos esfíncteres, ela passa a empregar esse modelo para impedir manifestações de agressão, choro, sexualidade ou medo, por exemplo.
Quando essa forma se instala de modo crônico, a pessoa como que amortece o impulso original e chega a deixar de sentir aquilo que a incomodava.
Isso a deixaria “confortavelmente anestesiada”, como dizia uma antiga letra de música do Pink Floyd. Reich denominou Vegetoterapia Caracteroanalítica a forma de tratamento criada nessa época. Vegetoterapia porque o objetivo seria influenciar o sistema nervoso autônomo (ou vegetativo) por meio do trabalho sobre a musculatura. Caracteroanalítica em razão da intervenção corporal ser vista, então, como um aspecto paralelo e complementar à análise das resistências. A couraça do caráter que inicialmente, na década de 20, era uma metáfora para designar um mecanismo psíquico passou a ser vista como algo ancorado materialmente no corpo, em especial nas tensões musculares crônicas.
A partir dessa visão, foram se desenvolvendo diversas formas de intervenção corporal que visavam obter um efeito psíquico (a eliminação do recalque). Entre outras possibilidades, surgiu o trabalho com toque e relaxamento, bem como intervenções sobre a respiração e a criação de exercícios expressivos.
Foi aí que nasceu de fato a psicoterapia corporal. Com a análise do caráter, Reich já havia dado um passo em direção ao corpo, na medida em que atribuiu grande importância ao que era visto. Agora, o corpo passou não só a ser olhado, mas também tocado, mobilizado e incentivado a expressar se. À associação livre de ideias acrescentou-se a associação livre de movimentos. O analista propõe atividades e exercícios e é autorizado a tocar o paciente. É importante notar que a forma de psicoterapia elaborada por Reich sofreu influências de autores do campo da psicanálise, como o húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933), que, com sua proposta de uma “técnica ativa”, deve ser considerado precursor nessa área.
Nos anos 30 houve um afastamento progressivo de Reich com relação à psicanálise, e a fundamentação teórica do trabalho reichiano deslocou-se, sobretudo, para a biologia. A capacidade de autor regulação e o grau de vitalidade do organismo, por exemplo, são elementos cuja importância se destaca nas suas novas formulações. Segundo ele, era importante evitar que a neurose se perpetuasse à custa de uma desvitalização do organismo.
Desse modo, além de trazer à consciência elementos inconscientes, propõe outra meta terapêutica de cunho essencial, como explica em texto de 1949, publica do em Análise do caráter. “Este é o nosso grande dever: capacitar o animal humano a aceitar a natureza que existe dentro de si, parar de fugir dela, e passar a desfrutar daquilo que agora tanto o atemoriza”. Ou seja, o objetivo do tratamento seria não apenas tornar consciente o que é inconsciente, mas também recuperar a vitalidade perdida ou bloqueada, deixar a sabedor ia espontânea da natureza (autor regulação) acontecer.
Esse aspecto tem grande importância na técnica, na medida em que se desenvolvem dispositivos voltados para essa finalidade.
No final dos anos 30, Reich foi ampliando seus trabalhos também para o campo da física, por meio de estudos experimentais, e passou a voltar seu interesse para algo que o mobilizou desde o início de sua trajetória científica: a pesquisa de uma energia básica, algo que, ao seu modo, lembra a libido freudiana. Tal linha de investigação o levou à conclusão de que existiria uma energia primordial, batizada com o nome de orgone, e ao estudo das propriedades e usos dessa energia. Em sua visão, essa energia primordial seria tanto biológica quanto cósmica.
Ao diminuir suas ações no campo curativo e ampliar as de meta preventiva, Reich criou em 1949, nos Estados Unidos, o Centro Orgonômico de Pesquisa sobre a Infância e, no ano seguinte, elaborou mais um de seus projetos permeados pela aliança entre teoria e prática, Crianças do Futuro, que visava somar esforços para prevenir o encouraçamento infantil. No mesmo país construiu os chamados acumuladores de orgone, também conhecidos como “caixas de orgone”, e desenvolveu trabalhos voltados, entre outros fins, para o auxílio na terapêutica de pacientes acometidos de câncer. Por esse emprego medicinal dos acumuladores, Reich passou a ser investigado pela FDA (Food and Drug Administration). Na sequência dos eventos, acabou preso por desacato à autoridade, sobretudo por não reconhecer a competência da corte para julgá-lo nas questões que envolviam aspectos científicos. Tudo isso se deu sob cobertura intensa da mídia e teve grande repercussão social. Seu trabalho passou a ser perseguido, incluindo a proibição de livros que nada tinham a ver com a energia orgone.
Muitas pessoas se surpreendem ao saber que nos Estados Unidos, nessa época, com toda a aparência de liberdade, os livros de Reich foram queimados por ordem judicial. Até mesmo os escritos sobre análise do caráter, educação e antropologia foram condenados à fogueira. Certamente contribuiu para esse ataque o clima social de intolerância ao diferente, sob os ecos do macarthismo e marcado pela Guerra Fria, que pautaram esse período.
Depois de passar cerca de nove meses na prisão, Reich morreu no dia 3 de novembro de 1957, de ataque cardíaco. Em linhas gerais, essa parte de sua produção científica, a ergonomia, ainda não recebeu a devida atenção da comunidade científica.
A psicoterapia corporal se expandiu a partir do fim da década de 50, principalmente por meio dos neorreichianos. Tal fato ocorreu no caldo cultural da época, em direção a uma maior liberdade sexual e contra a tradição autoritária patriarcal. Nesse movimento social, Reich era um teórico frequentemente citado, sobretudo por causa de sua obra sobre psicologia social, antropologia e política. Seu trabalho passou a ser valorizado em muitos segmentos sociais ligados à contracultura, influenciando a arte e os meios de comunicação. Isso possivelmente facilitou a difusão de abordagens terapêuticas inspiradas em sua obra, algumas das quais apresentaremos aqui de forma breve. O critério de escolha foi a importância da presença (em número de psicoterapeutas, instituições de formação e livros publicados em português) delas no Brasil. A ordem de apresentação segue em linhas gerais a cronologia de seu surgimento.
ANÁLISE BIOENERGÉTICA
O americano Alexander Lowen (1910-2008) foi paciente de psicoterapia e aluno de Reich entre os anos 1940 e 1952, tendo trabalha do como terapeuta reichiano na década de 40. Graduou-se em educação física e depois em medicina, que cursou na Europa. Ao voltar aos Estados Unidos em 1952 procurou retomar o contato com Reich, mas as coisas estavam diferentes. Lowen não conseguiu identificar-se com os orgonoterapeutas próximos a Reich, os quais, segundo ele, haviam assumido uma atitude quase fanática de fidelidade ao mestre e por causa disso não aceitavam nenhuma forma de questionamento ou avanço que pusesse em risco a ortodoxia. Apesar de ainda considerar-se um terapeuta reichiano, Lowen afastou-se do grupo e passou a introduzir modificações na técnica tradicional e a criar novas possibilidades de intervenção.
Em 1953, associou-se ao grego John Pierrakos (1921-2001), também terapeuta reichiano, e ambos desenvolveram uma série de técnicas e propostas, constituindo um embrião do que seria a análise bioenergética. Houve uma retomada da importância dos fundamentos psicanalíticos, sendo a análise do caráter colocada como centro da compreensão clínica e formulada uma tipologia com base nela.
Em 1956 foi criado o Instituto de Análise Bioenergética de Nova York. Em 1958 Lowen publicou O corpo em terapia, seu primeiro livro sobre o tema. Nele expõe os resultados da abordagem que criara, inovando em diversos aspectos técnicos e teóricos. Entre as novas técnicas estão o grounding e o trabalho respiratório sobre um banquinho (stool, especialmente desenvolvido para tal.
Grounding é um termo de difícil tradução. Muitas vezes aparece como “enraizamento”; entretanto é mais comum que o encontremos sem tradução nos textos da área. De início, designava alguns tipos de postura que buscavam atingir determina dos objetivos: aumentar a percepção dos membros inferiores e do contato com o chão, se apoiar com mais solidez e confiança nas pernas e pés, melhorar o contato com a própria sexualidade, desbloquear as tensões (couraças musculares) dos membros inferiores e pelve, facilitar o livre fluxo energético no corpo, desbloquear a respiração, vitalizar o organismo, incentivar a independência. Nesse processo, é muito importante que se consiga produzir uma vibração da musculatura dos membros inferiores, sinal de que a tensão está cedendo e a energia pode circular.
O trabalho com o grounding não foi apenas um acréscimo fortuito à técnica. Essa abordagem priorizou a atividade com o paciente em pé, enfatizando o contato dos pés com o chão (entendido como caminho para o contato com a realidade externa e interna). Dessa forma, houve uma reorientação do foco psicoterápico, caminhando numa direção bastante diferente da proposta por Reich, que priorizava o trabalho com o paciente deitado.
O conceito de grounding encontrou grande aceitação entre os profissionais da área, e sua abrangência tem crescido bastante, sendo muito mais que mero exercício. Fala-se hoje em grounding de olhar, grounding do bebê no colo da mãe quando ocorre uma maternagem suficientemente boa, grounding na família e na cultura.
A análise bioenergética é a escola com maior número de adeptos e de instituições de formação no continente americano, incluindo o Brasil.
Na Europa podemos destacar a contribuição do filólogo norueguês Ola Raknes (1887-1975), que foi discípulo de Reich na década de 30 e continuou acompanhando o desenvolvimento das ideias do mestre até o fim. O psicoterapeuta reichiano não trouxe nenhuma grande inovação teórica ou técnica, mas acabou tendo papel destacado na história do movimento, por meio de sua influência sobre alguns nomes importantes que depois criaram abordagens de grande repercussão. Ele foi psicoterapeuta e professor de Cerda Boyesen (psicologia biodinâmica), de David Boadella (biossíntese) e de Federico Navarro (vegetoterapia caracteroanalítica).
PSICOLOGIA BIODINÂMICA
Paciente e discípula de Raknes a partir de 1947, a norueguesa Cerda Boyesen (1922- 2005) resolveu cursar fisioterapia depois de formar-se psicóloga, pois achava que devia conhecer melhor o corpo humano. Sob a influência da fisioterapeuta Aadel Bülow-Hansen (1906-2001), começou a trabalhar com massagem. Mais tarde, fez uma síntese dessa técnica com o que havia aprendido com Raknes, além de ter sofrido forte influência da psicologia humanista na abordagem clínica. Disso resultou a criação da Psicologia Biodinâmica no fim da década de 60. Ao enfatizar o trabalho a partir do impulso interior, criou um enfoque que se afasta da ênfase no papel diretivo do psicoterapeuta, característico de boa parte das demais abordagens inspiradas em Reich.
A psicologia biodinâmica dá grande importância ao trabalho de associação livre de ideias e de movimentos. Na associação de ideias, pedimos ao analisando que diga tudo o que lhe vem à mente sem censura, mesmo que seja sem importância, absurdo, ridículo ou incômodo. Do mesmo modo, no âmbito somático, pedimos a ele que deixe qualquer movimento surgir, mesmo que não faça sentido ou não estejam claras a intenção e a direção dele. Deve-se respirar e ir ampliando o gesto ou som que aparecem e se deixar levar por eles.
Gerda enfatizou o papel das vísceras, indo além das concepções de Reich volta das para a compreensão e a intervenção sobre a musculatura. Segundo ela, além da couraça muscular existiria uma visceral (referente ao tubo gastrointestinal) e outra tissular (relativa ao tecido subcutâneo).
Destacou a importância de um setting (ambiente psicoterapêutico) acolhedor que promovesse o “derretimento” das couraças. Propôs fazer “amizade” com a resistência, que ela entende como algo que foi a melhor solução possível numa determinada época da vida. Não à toa, o analisando reluta em abandonar tal postura, sentida como uma proteção, pois inconscientemente permanece fixado ao período em que ocorreu o problema.
A defesa seria como uma muleta: se a chutarmos, o indivíduo cairá no chão. Se mostrarmos carinhosamente que ele não precisa mais dela e o ajudarmos a fortalecer as pernas, ele ganhará confiança e, aos poucos, deixa de lado, por conta própria, aquele apoio que antes parecia tão essencial. Essa pode ser uma boa metáfora da atitude de fazer amizade com a resistência. Na psicoterapia biodinâmica dá-se destaque ao perigo de formação daquilo que Gerda chamou de couraça secundária, que seria consequente a um trabalho terapêutico invasivo, que não respeita o ritmo e as possibilidades de assimilação do indivíduo. São os casos em que o processo de tratamento redunda em mais defesas e na acentuação da neurose em vez de levar a uma melhora e um abrandamento da couraça. Isso pode ocorrer em qualquer forma de psicoterapia.
Para dar um exemplo fora da área da psicoterapia corporal, em alguns casos o setting psicanalítico pode ter esse efeito: acontece muitas vezes de um analisando dizer algo como:
“Eu fui anos atrás me consultar com uma analista, ela me colocou deitado e disse que era para eu falar o que viesse à mente. Eu não tinha nada a dizer e fiquei quieto, parado. Ela também não disse nada, e eu saí mais angustiado do que quando entrei lá. Na sessão seguinte, a mesma coisa. Aquela situação era muito aflitiva, e eu perguntei se era assim mesmo; ela confirmou. Parei o tratamento e fiquei achando que esse negócio de terapia não é para mim. Não queria nem ouvir falar em voltar a procurar ajuda nesse sentido, apesar do meu sofrimento. Só vim aqui porque me disseram que o seu sistema de trabalho é diferente”.
Assim, na primeira entrevista esse analisando trazia não só a couraça desenvolvida contra os desencontros, frustrações e vicissitudes da vida, mas portava também uma “couraça” de desconfiança e medo diante da terapia, que demandou um trabalho para ser dissolvida antes que se procedesse ao cuidado com a sua neurose e a couraça propriamente dita.
Cerda formulou ainda teorias e técnicas importantes para o trabalho com questões que remetem a conflitos e deficiências ocorridos no primeiro ano de vida. Essa orientação está em consonância com temas elaborados pelo psicanalista inglês Donald W. Winnicott (1896-1971), como a questão do holding, da mãe suficientemente boa e do falso self. Pode-se dizer que Cerda teria tido um papel no que tange à herança reichiana que guarda certas semelhanças com aquele desempenhado pela psicanalista austríaca Melanie Klein (1882-1960) diante da orientação freudiana, ou seja, a incorporação à técnica e à teoria de elementos relativos ao primeiro ano de vida.
A psicologia biodinâmica é a escola de psicoterapia corporal que mais valoriza o trabalho com toque. Foram desenvolvidas diversas técnicas específicas e uma compreensão da massagem como uma forma de diálogo somático de grande importância na comunicação não verbal entre o psicoterapeuta e seus analisandos.
CRIAÇÃO DA BIOSSÍNTESE
Outro paciente e discípulo de Raknes é o inglês David Boadella, criador da Biossíntese. No início colaborador de Cerda Boyesen, desenvolveu posteriormente uma proposta própria na qual buscou integrar diversas abordagens, procurando aproveitar elementos variados para compor uma orientação mais abrangente.
Sua escola também valoriza o trabalho a partir do impulso interno, propondo um papel menos diretivo do psicoterapeuta. Tomando a capacidade de ressonância, empatia e contato humano como essenciais, o psicoterapeuta acompanha o indivíduo em um processo que dá forma a um desenvolvimento pessoal único.
Segundo Boadella, em seu livro Correntes da vida, “no processo de transformação de padrões de sentimentos e expressões que estão bloqueados, o elemento mais importante é a receptividade viva de outro ser humano (….) a ressonância somática das mãos, da voz e da presença do terapeuta é o campo organizacional no qual ocorre o processo formativo de reintegração do corpo, da mente e do espírito”.
O autor desenvolveu inúmeros conceitos e técnicas próprias. Na biossíntese merece destaque a compreensão dos processos psíquicos e som áticos humanos baseada nas três camadas germinativas primárias do embrião humano. Nos estágios iniciais da vida embrionária o embrião é constituído por três camadas de células diferentes, a mais externa (o ectoderma), a mais interna (o endoderma), e a intermediária (o mesoderma). Cada uma delas gera, ao longo do desenvolvimento, tecidos e órgãos distintos.
O endoderma dá origem ao revestimento interno do tubo intestinal, pulmões, fígado, pâncreas e diversas outras vísceras. Já o mesoderma forma os músculos lisos e estriados, ossos, articulações, tecido conjuntivo, sangue, vasos sanguíneos. O ectoderma, por sua vez, origina o sistema nervoso, a pele e os órgãos dos sentidos. Na visão da biossíntese, denominada embriologia funcional, num organismo saudável há um funcionamento integrado dos fluxos do movimento (mesoderma), da percepção e pensamento (ectoderma) e da vida emocional (endoderma). Esse equilíbrio pode ser perdido ao longo da vida, e o objetivo da terapia seria então tentar restaurar a integração das três camadas.
Com tal finalidade, diversas vertentes de trabalho se complementam:
- O centering, que consiste na liberação dos bloqueios respiratórios e emocionais. O foco estaria no endoderma, tratando de questões ligadas à geração de energia, ao metabolismo e às emoções.
- O grounding, que seria a atenção ao tônus muscular e à postura. O objetivo é o estabelecimento de uma boa relação entre os movimentos voluntários, semivoluntários e involuntários. Para isso, é importante que os músculos estejam com tônus adequado e não em hipertonia (rigidez) ou em hipotonia (flacidez). Nota-se aqui a influência das propostas da análise bioenergética.
- O facing, que corresponde ao cuidado com o vínculo e a organização da experiência por meio da comunicação verbal e do contato ocular. Os desequilíbrios priorizados nesse âmbito são os relativos à sensibilidade: a hipersensibilidade e a hipossensibilidade são consideradas questões a serem tratadas por meio da integração entre sentimento, linguagem e percepção.
Cabe também pontuar que Boadella atribui grande importância às raízes intrauterinas dos problemas emocionais. De acordo com o seu entendimento, o que ocorre com o ser humano, desde a fecundação e ao longo de todo o desenvolvimento embrionário e fetal, pode deixar marcas na sua estrutura emocional. Segundo ele, se o ambiente uterino for sentido pelo embrião como não receptivo no momento da nidação, quando o ovo fecundado se enraíza no útero materno, ao chegar à vida adulta o sujeito poderá ser afetado por fantasias ou pesadelos, como o de estar sendo tragado por areia movediça.
Outro aspecto enfatizado por esse autor é o contato com a essência. Partindo da visão de que em nossa cultura é cada vez mais comum haver pessoas que perderam o vínculo com uma parte essencial de si, ele propõe a ideia de grounding interior (innergrounding}, conceito que aponta para a necessidade de retomar esse contato e para as maneiras de alcançar esse objetivo.
Um tema para o qual Boadella traz contribuições originais é o da bioespiritualidade, em que a via para a alma passaria pelo corpo. O termo procura marcar a diferença com relação a certas formas de espiritualidade que priorizam o espírito em detrimento do organismo, ou seja, que veem na negação corporal o caminho mais direto para encontrar a alma. Para a bioespiritualidade, porém, alguns dos elementos somáticos que permitiriam um desenvolvimento espiritual seriam respirar plenamente, estar em contato com as próprias sensações e sentimentos, poder expressar livremente os impulsos na ação.
A VEGETOTERAPIA DE NAVARRO
O médico italiano Federico Navarro (1924-2002), também paciente e discípulo de Ola Raknes, criou a escola denominada Vegetoterapia Caracteroanalítica, o mesmo nome usado por Reich para designar sua proposta de psicoterapia corporal na década de 30. A abordagem de Navarro surgiu nos anos 70 quando, a pedido de Raknes, teria procurado sistematizar o trabalho clínico de Reich, organizando procedimentos técnicos e contribuindo para as correspondentes fundamentações teóricas.
Seu enfoque, embasado nas teorias reichianas, respeita a divisão da couraça muscular em sete segmentos: ocular, oral, cervical, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico. A partir de movimentos expressivos predeterminados e fixos (actings), trabalha os segmentos de modo organizado: cada um só será abordado depois de ter sido concluída a atividade com o anterior. Assim, o tratamento caminha do ocular ao pélvico.
Numa sessão típica dessa abordagem (com duração de 90 minutos), o paciente é convidado a realizar determinado acting por 15 minutos ou mais. Em seguida, ocorre uma conversa em que se explora verbalmente o que aconteceu durante o exercício: sensações, sentimentos, memórias e outras possibilidades. Depois é proposto que o paciente realize outro acting, seguido de mais uma rodada de elaboração verbal, e assim por diante.
Existem diversos actings para lidar com os bloqueios, e eles são propostos numa ordem determinada. Alguns exemplos são: no nível ocular, observar com os dois olhos a luz de uma lanterna, a uma distância de aproximadamente 25 cm, durante 15 minutos; no oral, manter a boca aberta durante 15 minutos; no cervical, fazer uma rotação da cabeça, alternadamente para a direita e a esquerda, dizendo “não” ao virá-la para cada um dos lados; no torácico, levantar os braços com os punhos cerrados e bater no colchão enquanto pronuncia a palavra “eu”, repetindo esse movimento continuamente.
Navarro, em seu livro Metodologia da vegetoterapia caracteroanalítica, ressalta que “não se trata de ‘exercícios de ginástica’, mas de uma proposta capaz de recuperar, por meio de movimentos musculares específicos – simples, intencionais, ativos – determinadas funções neuropsicológicas ligadas à esfera emocional”.
OUTRAS ESCOLAS
Professor de análise bioenergética, o americano Stanley Keleman, formado inicialmente em quiropraxia, trilhou um percurso próprio a partir de 1971, sob influência das ideias do psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937), criador da Psicologia do Indivíduo, do psicoterapeuta suíço Medard Boss (1903-1990), mentor da daseinsanalyse, baseada na fenomenologia existencial de Heidegger, e do professor Karlfried von Durkheim, do Centro para Estudos Religiosos, na Alemanha, com quem estudou psicologia do sagrado. Também teve contato com psicólogos humanistas como Carl Rogers e Frits Perls e trabalhou por 15 anos com o mitólogo americano Joseph Campbell (1904-1987), realizando seminários sobre corpo e mitologia.
Keleman criou um método próprio, no qual enfatiza o trabalho com a propriocepção (capacidade de “sentir” o estado interno do corpo) e a questão da forma. Em síntese, a orientação procura levar o paciente a perceber o seu padrão corporal e a desenvolver novas formas de estar no mundo.
Apesar de esse autor não se considerar reichiano ou neorreichiano, muitos o tomam como tal, dada a semelhança de suas concepções e maneiras de intervenção com aquelas utilizadas nas demais abordagens influenciadas por Reich. Muitas dessas escolas neorreichianas incluem o ensino dos elementos kelemanianos (como o método dos cinco passos e ossomagramas) em seus cursos de formação de psicoterapeutas.
O grego John Pierrakos, que participou com Lowen da criação da análise bioenergética, desenvolveu posteriormente a energética da essência (Core Energetics). Muito influenciada por sua esposa, Eva Pierrakos, essa abordagem enfatiza o campo energético (também chamado de aura) e a abertura para a espiritualidade como uma dimensão essencial do humano. O conceito de bioenergia nela utilizado tem forte ligação com concepções hinduístas, tais como a existência de centros de energia (os chamados chakras), que devem ser trabalhados e balanceados como parte do tratamento. Além da influência de Freud e Reich, Pierrakos incorpora também em sua fundamentação ideias do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) quanto à relação entre psicologia e espiritualidade.
Existiriam três níveis de consciência: o primeiro refere-se à essência ou ” Eu superior”, que inclui a capacidade para o amor; o segundo, ou “Eu inferior”, comporta os sentimentos negativos e as qualidades distorcidas; e o terceiro é a máscara, aquilo que o indivíduo apresenta para o mundo externo, que serve para ocultar e proteger os elementos dos níveis anteriores.
já Paul Boyesen, filho de Cerda Boyesen, desenvolveu nos anos 80 a Análise Psico-orgâica a partir de elementos da psicologia biodinâmica (como a massagem). Dando grande importância ao trabalho analítico a partir das comunicações verbais e das imagens produzidas pelo paciente, enfatiza também as questões relacionais ligadas à transferência e contra-transferência. Procura sempre conectar o verbal com a experiência corporal.
Nessa abordagem são desenvolvidos modelos conceituais próprios, como o círculo psico-orgânico, uma espécie de estrutura dinâmica que permite analisar a psique humana, assim como a relação entre duas pessoas. Está organiza do sobre a forma de nove pontos: necessidade, acumulação, identidade, força, capacidade, conceito, expressão, sentimento e orgonomia. Comporta dois lados, um ascendente (o fluxo, a carga, o eu) e outro descendente (o defluxo, a descarga, o mundo).
Dá destaque ao “verbar”, que é a fala que traz consigo a potencialidade da ação, do movimento. Busca uma retomada do contato perdido com o corpo, a vitalidade e a criatividade, de modo que o sujeito possa resgatar a confiança nos próprios sentimentos e sensações.
No Brasil um dos continuadores do trabalho de Reich na área de psicoterapia é o psiquiatra e escritor Roberto Freire (1927-2008). Ele elaborou a soma, proposta que procura integrar ao enfoque reichiano uma visão política anarquista e a capoeira.
Esses dois autores brasileiros, ao contrário da grande maioria dos autores estrangeiros anteriormente apresentados, não limitaram seus escritos e sua atenção ao terreno da psicoterapia. Suas perspectivas enfatizam também os aspectos socioculturais, destacando a necessidade de uma liberalização dos costumes, especialmente no terreno da sexualidade, como essencial para a criação de uma sociedade mais justa e fraterna. O psicólogo Ângelo Gaiarsa também teve participação importante na divulgação das psicoterapias corporais. Ele baseia seu pensamento em conexões com a psicofisiologia da motricidade e a biomecânica, dando pouca atenção aos aspectos energéticos e orgonômicos da teoria reichiana.
Merece ainda destaque a contribuição do húngaro radicado no Brasil Pethõ $andor, criador de uma nova forma de psicoterapia corporal, que, apesar de incorporar elementos reichianos, tem sua fundamentação principal nas ideias de Jung.
Outra herança vinculada à tradição reichiana é o grupo de movimento. Trata-se de uma denominação genérica empregada para designar os trabalhos grupais em que se realizam práticas corporais inspiradas em procedimentos das diversas formas de psicoterapia corporal. Nesse tipo de atividade frequentemente são incorporadas técnicas oriundas de outras abordagens com o corpo, como ioga, artes marciais, danças diversas, trabalhos posturais, eutonia etc. Os grupos de movimento podem ser complementares à psicoterapia ou feitos de maneira independente, como forma de autoconhecimento, facilitadores da expressão emocional e, em sentido geral, como atividade que contribui para o desenvolvimento pessoal.
Nos últimos anos, seus benefícios, quando utilizados nas áreas da clínica ou da educação, têm sido comprovados em investigações efetuadas em cursos de pós-graduação. Como exemplo, ver a dissertação de mestrado Sensibilização e conscientização corporal do professor: influência em seus saberes e suas práticas pedagógicas, defendida em 2003 por Márcia Helena Ferreira Moysés, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
LEITURA CORPORAL
Leitura corporal é o nome que se cunhou, no âmbito da psicoterapia, para designar o campo de estudos e práticas que trata da utilização de outros elementos além do que é expresso pelo conteúdo das palavras do analisando. Podemos considerar Freud como um dos primeiros a explorar o potencial terapêutico desse tipo de abordagem: em um comentário, sobre o chamado caso Dora, ele diz que “quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode convencer-se de que nenhum mortal pode guardar um segredo. Se os seus lábios permanecem silenciosos, ele conversa com a ponta dos dedos; a revelação transpira dele por todos os poros”.
Enquanto a psicanálise, sobretudo na vertente lacaniana, privilegiou a “escuta analítica”, Reich colocou como elemento central de sua análise do caráter a observação dos aspectos não verbais, como o tom de voz, a movimentação do paciente, as posturas adotadas por ele, a expressão do olhar e a mímica facial. Na expressão feliz de Gaiarsa, toda conversa comporta letra (ideias enunciadas), música (tom de voz e outros ruídos que a acompanham) e dança (movimentação corporal que ocorre junto).
Reich explorou bastante o uso desses elementos, sendo pioneiro na utilização clínica daquilo que hoje se pesquisa sob o nome de comunicação não verbal – tema que constitui vasto e fascinante campo de estudos científicos. Nesse domínio, a primeira distinção deve ser feita entre aquilo que é crônico e o que é reação do momento. Características de longa duração permitem saber como a pessoa é, qual o seu “jeitão” (o caráter, na concepção reichiana), aquilo que ficou configurado como forma estereotipa da de agir em função de eventos ocorridos ao longo da história do sujeito, especialmente na infância. Cada traço de caráter seria a cicatriz de um desencontro, a resultante de um conflito e de uma maneira de resolvê-lo que ficou cristalizada como forma típica de reação. É isso que permite à pessoa “ler” a história de vida de alguém por meio da observação da expressão facial, das posturas e dos gestos habituais.
Ao lado da percepção de como a pessoa é existe a análise de como a pessoa está. O psicoterapeuta treinado consegue perceber reações que às vezes duram apenas frações de segundo, mas são bastante significativas. Muitas vezes, em nossos cursos, ao filmar a interação entre as pessoas vemos que a repressão da raiva, por exemplo, não ocorre de forma instantânea, mas quase instantaneamente.
É possível detectar a configuração da expressão facial raivosa que logo em seguida é substituída por outra, que disfarça aquele sentimento. O próprio indivíduo que expressou o sentimento muitas vezes pode não ter consciência clara disso, mas, quando questionado, e após um momento de consulta interior, confirmará o que foi percebido pelo observador ou ficou registrado na filmagem.
A leitura corporal revela muito sobre o que ocorre no interior de uma pessoa. Pode-se até dizer que em muitos casos o inconsciente é visível. Quando as coisas fluem bem na interação entre pessoas, vemos que as posturas e os ritmos dos participantes são congruentes e harmônicos; já na presença de conflitos ocorre o contrário. Desse modo, observando uma dupla ou grupo a distância, o observador treinado pode avaliar se o que ocorre é conversa harmoniosa, paquera, discussão, se alguém está sendo excluído etc. Isso muitas vezes é tão óbvio que pode ser evidente mesmo para a pessoa menos atenta: por exemplo, se você sintonizar um canal de TV ao fim de uma partida de futebol, basta olhar a postura dos atletas saindo de campo para saber quem venceu e quem perdeu.
O modo de ser da pessoa fica evidente quando se observa a forma de andar. Ou seja, a maneira de levar a vida é também um jeito de levar o corpo a se deslocar no espaço, segundo o conceito reichiano de “unidade funcional soma-psique”. Isso pode ser comprovado por qualquer um ao realizar o “exercício do sombra”. Muito utilizado nos cursos de formação em psicoterapia corporal e no treinamento de atores, consiste em caminhar atrás de uma pessoa, imitando seu andar, o jeito de pisar, o ritmo, o balanço, até conseguir se locomover como uma cópia ou sombra dela. É fascinante o quanto se pode aprender sobre como é essa pessoa, de que modo ela pensa, como está sentindo a vida nesse momento.
Esse princípio de obter informações imitando o indivíduo foi proposto por Reich como ferramenta clínica de grande valor. De acordo com ele, no livro Análise do caráter, “os movimentos expressivos do paciente provocam involuntariamente uma imitação no nosso próprio organismo. Imitando esses movimentos, ‘sentimos’ e compreendemos a expressão em nós mesmos e, consequentemente, no paciente”. Assim, muitas vezes é possível obter uma compreensão mais profunda do que ocorre a eles ao assumirmos, como psicoterapeutas, a mesma postura, expressão facial e gestualidade que apresentam em dada sessão.
A percepção da variação do tônus muscular nas diversas regiões do corpo, das alterações da cor da pele, da harmonia ou desarmonia dos gestos, posturas e expressões, tudo isso fornece indicações importantes e úteis. A mímica facial, em especial, é muito reveladora. Ê bastante frequente haver grande diferença entre as metades esquerda e direita do rosto, que revelam aspectos diferentes e não raro conflitantes da personalidade de alguém.
A distância entre os participantes de um diálogo também traz informações importantes. Quando esta é muito grande, tende a remeter ao esfriamento da interação – muitas confidências só são viabilizadas dentro do calor de certa proximidade. Por outro lado, estar perto demais de alguém pode ser inibidor e invasivo, dificultando ou mesmo inviabilizando a relação terapêutica. Para complicar, isso não se dá da mesma forma para as pessoas e pode variar inclusive para a mesma pessoa em diferentes momentos. Assim, percebe-se a necessidade de um setting flexível, que possa se modificar conforme o caso.
O ângulo entre analisando e psicoterapeuta também influi no que acontece. Ficar frente a frente induz à relação mais direta, mas também pode facilitar o “enfrentamento”, ou seja, o conflito, por meio de projeções e transferências. Um ângulo de 90° é mais neutro, sendo mais adequado e prudente em certas ocasiões. Sentar-se ao lado tem a conotação óbvia (mas nem por isso menos efetiva) de “estou ao seu lado” nessa situação. A posição analítica (sentar-se fora do campo de visão do analisando) é ainda outra possibilidade muitas vezes usada, especialmente nos casos em que o indivíduo tende a ficar monitorando a expressão do psicoterapeuta para ver como ele reage ao que é dito. A falta de contato visual facilita o mergulho do sujeito em si próprio, em seus conteúdos. Mas poderá ter um efeito inibidor se o importante for o desenvolvimento do contato interpessoal. Como resultado, a posição psicanalítica tradicional é uma das possibilidades dentro do setting da psicoterapia corporal. Mas existem outras, e a escolha é feita sempre levando em conta o que é melhor em cada situação.
Obviamente, o uso clínico desse material percebido pelo psicoterapeuta requer grande dose de cuidado. Muitas vezes é bastante difícil para o analisando tomar contato com esse tipo de informação: afinal de contas, ele em geral faz (de modo inconsciente) enorme esforço para manter tudo isso fora do alcance da consciência. Se, de repente, chega alguém revelando algum aspecto que seu aparelho psíquico tem dificuldade de tolerar, isso provavelmente gerará resistência. Portanto, em análise, a comunicação verbal de algo só deve ser efetuada no momento adequado do processo terapêutico. Além disso, é necessário adotar uma postura ética ligada a esse saber. Um dos piores usos que se pode fazer dessa forma de conhecimento é levá-lo para fora do contexto psicoterápico, como para se exibir em festas ou ainda por mero sadismo e gosto de humilhar o próximo.
PONTO DE TOQUE
O contato corporal, se utilizado criteriosamente, pode trazer muitos ganhos no contexto de um tratamento analítico. É um bom recurso, por exemplo, para trabalhar questões que envolvam confiança e possibilidade de entrega. Do ponto de vista reichiano, a massagem pode exercer ação terapêutica sobre alterações do tônus muscular, com consequente efeito psíquico. Pode ainda colaborar para a vitalização do organismo, além de incentivar a auto percepção. Não é incomum que o paciente comente após uma sessão de massagem algo como: “Puxa, eu tinha esquecido que tinha corpo!”. A experiência de que pode ser prazeroso ter um corpo, morar nele, ajuda a lidar com aspectos esquizoides que tentam se afastar da realidade encarnada da existência. É mais prazeroso viver quando se tem uma sensação harmoniosa e relaxada do corpo, e tal propriocepção motiva a busca por recursos terapêuticos que visem minimizar as limitações decorrentes de nossas couraças.
Questões do primeiro ano de vida, relativas ao cuidado materno não suficientemente bom, podem ser acessadas e trabalhadas por esse meio. O toque e a massagem podem facilitar a vivência de estados regredidos, os quais possibilitam o contato com conteúdos inconscientes traumáticos. Esse tipo de trabalho pode colaborar para a reparação de carências primitivas. Além disso, tende a propiciar ao paciente a segurança necessária para entregar-se ao contato com aspectos menos integrados de si mesmo, passo necessário para o desenvolvimento do processo de amadurecimento. Os elementos aqui listados podem ser vistos em conexão com propostas deriva das do pensamento de Winnicott. Segundo ele, em seu artigo A capacidade para estar só, de 1958, “para o paciente que não teve um início de vida suficientemente bom, o analista é a primeira pessoa em toda sua vida a suprir certos aspectos essenciais do ambiente”. Ou seja, o analista seria não apenas alguém que contribuirá para a percepção de aspectos inconscientes, mas também aquele que propiciará condições para a formação de estruturas psíquicas essenciais que não foram desenvolvidas no início da vida por deficiências do ambiente. A importância para a vida psíquica dos acontecimentos do primeiro ano de vida tem sido sistematicamente referendada em muitos estudos. Essa é uma época em que os registros sensoriais e motores predominam, dado que não existe ainda o domínio da linguagem por parte da criança.
Reich sustentava que o acesso a tais conteúdos pode ser facilitado quando o psicoterapeuta dispõe de recursos técnicos para entrar diretamente em contato com esses registros corporais. Essa forma de atuação clínica seria muito mais completa e eficaz que aquela na qual tudo deve ser traduzido em palavras.
O toque e a massagem podem ser utilizados também com o objetivo de gerar efeito ansiolítico, que é facilitador do equilíbrio psíquico. Assim sendo, configuram recursos valiosos no manejo de estados confusionais leves, que se seguem a mobilizações emocionais. Usando o contato físico como recurso coadjuvante, uma conversa pode, por exemplo, ser acompanhada por um toque no peito, o que facilita a percepção dos sentimentos presentes nessa região, contribuindo para o aprofunda mento dos conteúdos emocionais envolvi dos no tema.
Ou ainda, sabendo que as tensões no pescoço muitas vezes estão relacionadas a um a falta de contato com as percepções oriundas do tronco, membros e vísceras, o terapeuta poderá levar o paciente que fala enquanto está deitado a se beneficiar da massagem no local da hipertonia. Com isso, suas associações e memórias tendem a revelar material analítico potencialmente mais aprofundado, isso em comparação ao que seria manifestado se sua rigidez muscular fosse deixada intacta.
Nesse domínio do contato corporal é necessário apontar, ao lado das múltiplas indicações, a presença de contraindicações importantes. Em geral se evita o contato físico em condições de transferência negativa ou erótica. Obviamente, casos em que o paciente se sinta invadido ou constrangido com o toque também constituem ocasiões em que ele deve ser evitado. O que se deve notar é que existe uma concepção teórica a sustentar esse tipo de intervenção. O psicoterapeuta se orienta a partir de um conhecimento que lhe indica quando, como, onde e a quem tocar.
Muitos psicoterapeutas de outras abordagens têm ressalvas quanto à questão do contato físico com os analisandos. Dizem que isso propiciaria uma erotização do campo intersubjetivo que atrapalharia o tratamento. Em primeiro lugar, se tomarmos essas palavras ao pé da letra, os consultórios médicos e de fisioterapia, onde os indivíduos são tocados de forma rotineira, não se distinguiriam muito dos bordéis. É claro que isso não é o que acontece, e os profissionais desses ramos sabem (idealmente) como lidar com situações constrangedoras decorrentes do contato físico. Do mesmo modo, um psicoterapeuta corporal tem a sua ética e recebe treinamento que visa garantir a condução do trabalho sem ser invasivo nem causar mal às pessoas que atende. De outra parte, nada garante que processos de aproximação sexual não possam ocorrer por meio de recursos de contato a distância, potencialmente geradores de muita intimidade, como a fala e o olhar.
Freud rompeu com a tradição médica milenar de tocar e examinar fisicamente o paciente. Houve, entretanto, um período inicial em que o contato corporal era uma possibilidade. Por exemplo, em certos casos ele tocava a testa de seus pacientes para facilitar a evocação dos conteúdos recalcados. É interessante notar que, nos primórdios do tratamento analítico, Freud fazia também outros tipos de “trabalho corporal”. Em 1895, em carta a seu amigo Wilhelm Fliess (1858-1928), ele descreve o tratamento da sra. K: “No caso dela, inventei uma terapia estranha, de minha própria autoria: procuro áreas sensíveis, pressionoas e, desse modo, provoco acessos de tremor que a aliviam. (….) quando pressiono um ponto de sua cavidade axilar, ela afirma senti-lo ao longo de todo o braço, até os dedos”. Essa poderia muito bem ser a descrição de uma sessão de psicoterapia corporal neorreichiana dos dias de hoje.
INTERVENÇÕES VARIADAS
Na psicoterapia corporal, além da expressão verbal, as pessoas são convidadas a liberar a expressividade do próprio corpo. Pequenos movimentos localizados são em geral manifestações inibidas de agitações no mar do inconsciente. Quando se consegue que isso venha à tona, abrem-se canais de comunicação do indivíduo consigo mesmo que são de grande valor. Por exemplo, ao sujeito que sente tensão nas costas, pede-se que preste atenção ao local e veja se há algum a coisa que seu corpo queira expressar. Disso pode surgir um impulso de raiva nos braços e mãos, como se quisesse torcer o pescoço de alguém. Damos a ele uma toalha e pedimos que deixe vir o movimento expressivo. Ao longo desse processo, normalmente surgem na consciência memórias relativas a situações infantis ou atuais, a conflitos e pessoas que motivaram essa raiva, elementos antes inconscientes.
Em outros casos, pode acontecer de o paciente se encolher e expressar choro. Ou, ainda, expressar movimentos sensuais que haviam sido reprimidos há muito tempo. Do mesmo modo, essas manifestações corporais em geral são acompanhadas de memórias, sentimentos, imagens, insights e outros elementos que servem como ponto de partida e podem dar bons frutos ao longo de uma elaboração do material que veio à tona.
Na esfera dos movimentos expressivos existem inúmeros exercícios desenhados com propósitos variados. Entre muitas outras possibilidades estão: aumentar a vitalização do organismo, afrouxar a hipertonia muscular, ampliar a consciência corporal, ajudar o indivíduo a apoiar-se nas próprias pernas ou a encontrar seu eixo {trabalhando a coluna vertebral), tonificando áreas de musculatura flácida e facilitando a expressão de sentimentos agressivos.
Outra forma de favorecer o contato com conteúdos emocionais e psíquicos mexendo no corpo é o trabalho com a respiração. Uma das grandes contribuições de Reich foi perceber que o recalque e outros mecanismos de defesa psíquicos estão intimamente conectados ao bloqueio respiratório. Quando se afrouxam as tensões no diafragma e em outros músculos respiratórios, vemos que isso frequentemente tem como consequência o aparecimento de conteúdos antes inconscientes, em geral com grande carga emocional, facilitando assim o surgimento de ” material analítico”. Em processos psicoterápicos em que eles estão “travados” ou ” empacados”, tal recurso pode ser de enorme importância.
Assim sendo, uma dimensão importante da técnica é o uso de formas variadas de intervenção que permitam ao analisando respirar de modo mais livre e pleno. Exercícios específicos, relaxamento, massagens e outras formas de trabalho que contribuam para isso são considerados como recursos valiosos para o tratamento.
Hoje em dia esse é um saber de domínio público. Quando uma pessoa está nervosa ou estressada, é comum alguém dizer ” respire fundo e relaxe” como forma de ajudar a modificar tal estado. Porém, poucos sabem da importância de Reich na difusão desse tipo de conhecimento na cultura ocidental moderna. Seu papel pioneiro deve ser lembrado, dado que ele foi um dos primeiros a destacar a importância do uso de intervenções corporais no tratamento dos transtornos psíquicos.
Outro enfoque muito utilizado em psicoterapia corporal é o que visa o enriquecimento da auto percepção. Uma das formas mais comuns de bloqueio emocional se dá por meio da perda do contato consigo mesmo, tal fato ocorrendo quando a consciência do próprio corpo é neutralizada ou anestesiada. Esse efeito é obtido nos casos em que a pessoa não tem consciência de suas sensações corporais.
Quando a atenção é trazida de volta às sensações oriundas da pele, do sistema locomotor e das vísceras, isso automaticamente leva à conscientização de conteúdos antes inconscientes, o que facilita os insights e constitui um passo importantíssimo na direção da apropriação de si mesmo.
Nota-se que isso está em sintonia com concepções das neurociências atuais como as ideias do neurocientista português António Damásio relativas ao papel da percepção do que ele chama de paisagem corporal na geração da consciência e dos sentimentos.
Um dos equívocos mais frequentes em relação à psicoterapia corporal é acreditar que nela se descartam as comunicações verbais, e que o processo se desenvolve apenas por meio de trabalhos corporais variados. Essa leitura errônea expressa um entendimento fundado na cisão entre mente e corpo, algo predominante na nossa tradição cultural. já a visão reichiana afirma que o ser humano apresenta mente e corpo como aspectos indivisíveis da mesma realidade. Em outras palavras, o trabalho é feito com a pessoa como um todo, com atenção simultânea aos aspectos somáticos e psíquicos. É claro que em certos tratamentos o verbal acaba sendo priorizado, pois é por aí que as coisas fluem. Em outros casos, predominam as intervenções corporais – por exemplo, em pacientes que dizem algo como “eu já fiz muitas terapias verbais, já falei muito sobre meus problemas e vim aqui porque quero algo diferente”.
Na maioria dos atendimentos, entretanto (e, claro, dependendo do estilo de cada psicoterapeuta), as duas dimensões são exploradas de maneira integrada. Por exemplo, uma massagem faz vir à consciência a figura da mãe cuidando do irmão, e, ao se conversar sobre tal imagem, adquire-se o entendimento de certas nuances do triângulo mãe-paciente-irmão. O verbalizado pode levar a explorar um exercício expressivo, algo como encolher-se fisicamente, significando recolher-se par dentro de si e para longe do conflito. Desencadeia-se, então, uma nova rodada de conversa, muito interessante e carregada de emoção, enquanto o paciente mantém a posição encolhida. Tal posição facilita percepção de outros conteúdos, antes não tão claros, e que, provavelmente, seria de difícil percepção sem o realce proporcionado pela alteração postural.
ANÉIS DA COURAÇA
O conceito de anéis da couraça firmou-se como um dos mais conhecidos do grande público. Mesmo quem sabe pouco sobre as propostas de Reich muito provavelmente já ouviu falar dos tais anéis. Segundo ele, no livro Análise do caráter “a couraça está disposta em segmentos, quero dizer que ela funciona de maneira circular, na frente, dos dois lados, atrás, isto é, como um anel”. Tais anéis em número de sete, situam-se perpendicularmente à coluna vertebral do corpo humano: ocular, oral, cervical, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico.
Para o autor, a estrutura segmentada revelaria o mesmo arranjo básico já existente em animais primitivos, como os anelídeos (minhocas, vermes). O esquema elaborado por Reich explica sua concepção.
De acordo com Reich, como a maior concentração de bioenergia está na pelve e no baixo-ventre, se a bioenergia liberada nessas regiões encontra bloqueios musculares ainda não trabalhados, pode ocasionar sintomas psíquicos e distúrbios psicossomáticos. Por esse motivo, Reich determinou que a atividade clínica com os segmentos deveria proceder da cabeça em direção à pelve. Desse modo, o processo se inicia no segmento ocular, prosseguindo até que esse nível esteja desbloqueado. Depois se passa para o segmento oral, e assim por diante.
REICH E OS REICHIANOS
Numa apreciação global, constata-se que Reich não publicou um amplo detalhamento técnico a respeito da forma de psicoterapia que criou na década de 30. Assim sendo, o fato de muitos seguidores de Reich terem desenvolvido abordagens que diferiam da original parece ter sido inevitável em certa medida, já que o mestre abriu caminhos e foi inovador, mas nos legou apenas um arcabouço geral do que seria essa nova orientação de tratamento. Assim, no Brasil e no mundo, o desenvolvimento de escolas que inovaram em relação ao enfoque original é uma realidade.
Como é difícil explicar ao público leigo a diferença entre as várias tendências, é comum a denominação geral de psicoterapia reichiana, nome que engloba as diversas correntes que se inspiraram na obra de Reich. Muitas vezes isso facilita ao interlocutor que nos situe em uma classificação, porém pode ser que o psicoterapeuta “reichiano” que você conhece seja na verdade neorreichiano ou pós-reichiano.
Importa, então, tentar situar quais seriam esses diversos grupos. Existiriam os orgonoterapeutas, que trabalham basicamente nos moldes do que Reich fez a partir da década de 40. já os neorreichianos são os que incorporam a linha mestra do trabalho original, mas acrescentaram visão própria, novas técnicas e/ou formulações teóricas diferentes. Praticamente todos os neorreichianos usam como fundamento o que Reich denominou vegetoterapia caracteroanalítica, ou seja, a forma de trabalho efetuada, aproximadamente, na década de 30. As formulações posteriores, abrangidas pelo termo “orgonoterapia”, recebem destaque muito menor. Outra diferença importante é que nenhuma das escolas neorreichianas segue o modelo proposto por Reich de trabalhar isoladamente cada anel da couraça.
Pós-reichiano é uma denominação utilizada apenas pela escola de Vegetoterapia Caracteroanalítica de Federico Navarro, aparentemente querendo marcar que a proposta não é exatamente como a de Reich, mas, ao mesmo tempo, não se iguala à dos neorreichianos, no sentido de que não mudou tanto, e que seu modo de pensar e fazer a clínica é ainda bastante fiel às ideias do mestre. Por exemplo, essa escola mantém como fundamento da clínica o trabalho progressivo sobre os segmentos da couraça, se bem que com modificações em relação à proposta original.
No caso da bioenergia, há muita discussão a respeito dela. Alguns afirmam que essa noção não passa de uma crença sem valor científico. Essa restrição parece ser, do nosso ponto de vista, o principal obstáculo quando se busca o reconhecimento social das psicoterapias corporais de inspiração reichiana. Enfatizando tal aspecto, os críticos tendem a desqualificar qualquer forma de abordagem analítica ou psicoterápica que se vincule ao pensamento de Reich.
Encontramos, no campo da psicoterapia corporal, tanto profissionais que acreditam nas concepções orgonômicas de Reich quanto os que não concordam com ela, porém utilizam o conceito como forma de descrever fenômenos que ainda não podem ser compreendidos a partir de um referencial que esteja em maior sintonia com a ciência atual. Isso ocorre devido ao grande valor descritivo desse conceito em relação a acontecimentos da clínica.
Na psicoterapia, na massagem e na terapia corporal é comum dizermos: “ela estava com pouca energia”; “realizei o toque com a intenção de mobilizar a energia dele”; “tinha uma energia de raiva no ar”; “depois de desbloquear a tensão a energia fluiu”. Mas fica a dúvida: será que existe mesmo uma bioenergia, algo que pode ser medido e quantificado e tem realidade concreta? Ou será apenas uma metáfora útil para a clínica, mas que não fala de algo realmente existente?
Assim sendo, na esfera da psicoterapia corporal, a adoção ou não de uma perspectiva fundada na existência de energia concreta acaba por implicar pouca diferença, pois, na prática, os procedimentos e os resultados continuam a ser os mesmos, independentemente do grau de aceitação que se tenha da visão energética reichiana.
É interessante notar que os reichianos não estão sozinhos nesse tipo de enfoque. Entre os que acreditam na existência de alguma forma de bioenergia estão os que praticam muitas formas tradicionais de cura e tratamento como a homeopatia, a acupuntura e outras. Não nos esqueçamos também de que para o próprio Freud a libido seria energia biológica, hipótese que, segundo ele, algum dia, por meio dos avanços científicos, seria comprovada. Isso sem falar do campo filosófico, domínio no qual, por exemplo, está o argumento do francês Henri Bergson (1859-1941) de que a vida seria governada por uma força vital criativa, o élan vital. Ou seja, a construção de uma fundamentação energética sobre a vida e o adoecer humano se faz presente em muitas abordagens diferentes.
Além disso, diversas religiões e tradições espirituais também incorporam a noção de alguma forma de força vital. Especialmente as vertentes orientais – como o hinduísmo, taoísmo e outras – atribuem grande importância em suas concepções a um princípio energético fundamental.
NO BRASIL
O movimento reichiano teve sua inserção no Brasil nas décadas de 60 e 70. Assim sendo, sua entrada no país ocorreu no bojo de uma revolução de costumes em curso, a contracultura, que apontava para a liberação sexual, a contestação ao autoritarismo e a crítica à falta de espontaneidade e de vitalidade das maneiras conservadoras de ser. Assim como outras formas de psicoterapia mais ativas, como o psicodrama e a gestalterapia, a reichiana criticava a psicanálise em sua teoria e em suas técnicas. As novas abordagens seriam mais eficazes, revolucionárias e estariam vinculadas a um amplo projeto de transformação pessoal e social. A ênfase recaía na expressão emocional, e falava-se muito em desestruturação, em ter coragem de se soltar e se reinventar. A adaptação ao status quo era o que de pior poderia acontecer a alguém, e, para muitos, a “loucura” era vista como um estado superior.
Com o passar do tempo, apesar de muitos efeitos terapêuticos positivos para grande parte das pessoas atendidas sob esse enfoque, foi-se percebendo que existiam pacientes cujos problema demandavam formas diferentes de cuidado. Além disso, a necessidade de atualização, reflexão e problematização das abordagens utilizadas levou cada vez mais os profissionais da área ao contato com a pesquisa, mestrados e doutorados em programas de pós-graduação.
Naquele primeiro período, a tônica estava na ruptura com a herança freudiana. Hoje, a maior
parte dos psicoterapeutas corporais brasileiros se posiciona de modo diferente. A teoria psicanalítica, em suas diversas vertentes, é vista como um fundamento importante para o entendimento dos processos psíquico s e da psicopatologia. No aspecto técnico, o reconhecimento dos problemas causados por um setting pouco rigoroso tem conduzido à valorização de normas mais estritas e mais semelhantes ao que é preconizado na postura psicanalítica. Desse modo, a atual psicoterapia de inspiração reichiana é muito diferente daquele modelo antigo, mas para boa parte do público e da mídia parece ter ficado a imagem anterior, com toda a carga de preconceito que lhe pertence.
Entretanto, apesar dos problemas contidos na postura inicial, não se pode entendê-la como um equívoco. Ela fez parte de um período histórico em que ocorreu uma efetiva liberalização nos costumes, especificamente quanto à sexualidade e à ampliação do que se aceitava como “normal”. Desse modo, as correntes teóricas modernizadoras, entre as quais podemos contar o campo reichiano, tiveram papel importante nessa transformação.
Por fim, cabe afirmar que a psicoterapia corporal de inspiração reichiana se encontra bem viva nos dias de hoje.
Milhares de psicoterapeutas no Brasil e no mundo dedicam-se a esse tipo de abordagem, com dezenas de instituições formadoras, além de inúmeras teses, artigos, livros e congressos que atestam a vitalidade desse campo de atividade.
CRONOLOGIA
1897 – Nasce Wilhelm Reich, em Dobrzanica, em 24 de março no Império Austro-Húngaro.
1918 – Ingressa na Faculdade de Medicina na Universidade de Viena. Interessa-se pelas ideias do filósofo Henri Bergson (1859-1941).
1919 – Coordena o Seminário de Sexologia, atividade organizada pelos estudantes de medicina, dentre eles Otto Fenichel (1898-1946). Efetua o seu primeiro contato com Freud.
1920 – Ainda estudante, é admitido como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Inicia sua prática como psicanalista.
1922 – Forma-se médico e atende como psicanalista no Ambulatorium de Viena (clínica psicanalítica voltada para o atendimento da população de baixa renda), onde ocupa os cargos de Primeiro Assistente Clínico (de 1922 a 1928) e Vice-Diretor (de1928 a 1930).
19 24 – Torna-se Diretor do Seminário de Técnica Psicanalítica de Viena, cargo no qual ficará até 1930.
Recebe a primeira carta de Freud, de um total de 10 missivas. O tema da técnica é o principal assunto focalizado nessas missivas.
1925 – Lança o livro O caráter impulsivo, escrito que inaugura a sua visão globalizante das defesas neuróticas.
1927 – Inicia a publicação de artigos científicos sobre a técnica da análise do caráter, linha de trabalho que, posteriormente, vai influenciar a Psicologia do Ego norte-americana. Publica o livro A função do orgasmo: psicopatologia e sociologia da vida sexual. Aproxima-se do Partido Comunista Austríaco. Começa a enfrentar resistências às suas ideias na Associação Psicanalítica de Viena. Nesse período, o da década de 1920, é apoiado por Freud.
1928 – Lidera a fundação da Sociedade Socialista para o Aconselhamento e a investigação Sexual, entidade que criou, em Viena, seis Clínicas de Aconselhamento e Orientação Sexual para Trabalhadores.
1929 – Publica Materialismo dialético e psicanálise, uma articulação original entre o pensamento freudiano e o marxismo, inaugurando um campo que ficou conhecido como freudo-marxismo. Viaja para Moscou, conhece os centros de educação coletiva e estabelece contato com a pedagoga e psicanalista Vera Schmidt (1889-1937).
1930 – Muda-se para Berlim e ingressa no Partido Comunista Alemão.
1933 – Lança Análise do caráter, livro que congrega sua proposta para a técnica psicanalítica. Publica Psicologia de massas do fascismo, cujas teses culminarão na sua expulsão do Partido Comunista. Com a ascensão de Hitler ao poder, Reich retorna a Viena, mas não será acolhido.
1934 – Já sem o apoio de Freud, é expulso da IPA, sobretudo por sua militância política. Publica artigos com pseudônimos na Revista para Psicologia Política e Economia Sexual, da qual será editor até 1938.
Depois de breves períodos na Suécia e Dinamarca, passa a residir na Noruega. Começa a incrementar o enfoque psicorporal nos atendimentos clínicos. Com críticas à orientação burocrática do Partido Comunista Alemão, publica O que é consciência de classe? um escrito de psicologia política.
1936 – No terreno da discussão dos padrões culturais sobre sexualidade, lança o livro A revolução sexual, uma ampliação de um escrito original de 1930.
1939 – Muda-se para Nova York. Ministra aulas na New School for Social Research.
1940 – Desenvolve o trabalho sobre a teoria da energia orgone, produzindo acumuladores de orgone.
1942 – Compra uma fazenda em Maine, onde hoje está sediado o Museu Wilhelm Reich. Inicia a publicação do Jornal Internacional de Economia Sexual e Pesquisa em Orgone. Publica A função do orgasmo, escrito em que expõe a progressiva construção de suas ideias.
1945 – Lança outra edição de A revolução sexual e a segunda edição de Análise do caráter, versão acrescida do trabalho Contato psíquico e corrente vegetativa.
1946 – Publica uma segunda edição de Psicologia de massas do fascismo, versão que pouco conta com o referencial marxista da edição original de 1933.
1948 – Lança Escuta, Zé Ninguém! um trabalho sustentado na tese de que o ajustamento social não pode ser utilizado como critério de normalidade psicológica. Publica A biopatia do câncer, livro dedicado ao entendimento dessa enfermidade de um ponto de vista da orgonomia.
1949 – Publica a terceira edição ampliada de Análise do caráter, que passa a conter também os artigos
A peste emocional, A linguagem expressiva da vida e A cisão esquizofrênica. Buscando ampliar o trabalho preventivo nos campos da saúde e da educação, funda o Centro Orgonômico de Pesquisas da Infância, entidade responsável pelo projeto Crianças do Futuro.
1954 – A FDA abre um processo judicial contra Reich.
É decretada a proibição da circulação dos acumuladores de orgone e de livros e revistas sobre o assunto.
1956 – Reich e um de seus assistentes são condenados à prisão em 7 de maio por violarem o decreto judicial.
Em 23 de agosto, a FDA supervisiona a incineração de toneladas de seus livros e escritos. É fundado o Instituto de Análise Bioenergética de Nova York.
1957 – Por desrespeito ao tribunal, Reich é preso em 11 de março. Em 3 de novembro, na penitenciária de Lewisburg, Pensilvânia, morre aos 60 anos de ataque cardíaco.
1958 – Alexander Lowen (1910-2008) publica seu primeiro livro, O corpo em terapia, marco em suas pesquisas em análise bioenergética.
1969 – Cerda Boyesen (1922-2005) muda-se para Londres e desenvolve as primeiras formulações sobre psicologia biodinâmica.
1970 – David Boadella, criador da biossíntese, funda a revista Energia e Caráter, dedicada à psicoterapia corporal neorreichiana.
1971 – Stanley Keleman funda o Center for Energetic Studies.
1972 – A publicação de O anti-Édipo, de Cilles Deleuze e Félix Cuattari, promove um reinteresse sobre a obra de Reich no círculo intelectual francês.
1983 – John Pierrakos (1921-2001) funda o primeiro centro de Core Energetics.
1985 – Gerda Boyesen publica Entre psique e soma, texto de referência para a abordagem biodinâmica. Boadella lança Correntes da vida e Keleman, Anatomia emocional.
1987 – Sai a público o livro Somatopsicodinâmica, do médico italiano Federico Navarro (1924-2002).
OS AUTORES:
PAULO ALBERTINI – é professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Autor/organizador de Na psicanálise de Wilhelm Reich (Zagodoni, 2016), Jung e Reich: articulando conceitos e práticas (Guanabara Koogan, 2009), Reich em diálogo com Freud: estudos sobre psicoterapia, educação e cultura (Casa do Psicólogo, 2005), Reich: história das Ideias e formulações para a educação {Ágora, 1994).
RICARDO AMARAL REGO – é médico, doutor em psicologia, analista biodinâmico e analista bioenergético. Ê professor e diretor do Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica. Fundador da Revista Reichiana. Autor de Deixa vir… Elementos clínicos de Psicologia Biodinâmica (Axis Mundi, 2014), e coautor de Grupos de movimento (Cadernos Reichianos – Instituto Sedes Sapientiae, 1994), Reich em diálogo com Freud: estudo sabre psicoterapia, educação e cultura (Casa do psicólogo, 200S), Lacaneando (Wak, 2009) e O Toque em psicoterapia. Massagem biodinâmica (KBR, 2014).